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Ano Novo, Ano Velho

Como seria o diálogo do Ano Novo e Ano Velho, talvez já não sob as muralhas de Elvas, mas nas Chegadas de um Aeroporto?

Há mais de um século, Eça de Queirós escrevia, de parceria com Ramalho Ortigão, um conjunto de crónicas conhecidas como “As Farpas”, posteriormente coligidas e editadas em livros. Pode dizer-se que essa dupla encetou uma nova forma de fazer jornalismo em Portugal.

Como seu jeito acerado de atacar os males nacionais, Eça arranjou não poucos inimigos, sendo mesmo acusado de mau português. Eterna desculpa de quem não aceita críticas ou toma qualquer contestação da Ordem e da Moral estabelecida como motivo de lesa-pátria.

Numa dessas divagações, imaginou o grande escritor a passagem do Ano Velho para o Ano Novo, não com festejos e fogos de artifício, mas como dois personagens que se cruzam, numa esquina da vida.

O encontro foi imaginado na fronteira, sob as muralhas de Elvas, uma vez que o Ano Novo havia de entrar por ali, vindo de Leste, da Europa civilizada, como era devido, na ótica cosmopolita de Eça de Queirós.

O Ano Velho era uma caricatura da lusa sociedade de então; Eça descreveu-o como “aportuguesado”. Na passagem de conhecimentos, como cumpre numa rendição entre cavalheiros investidos em altos cargos, o Ano Velho lá foi desfiando as mágoas sofridas naqueles doze meses.

Alarmado, o Ano Novo lá foi questionando as razões de tanta desgraça. Por fim, exclamou: mas este País tem Colónias! Resposta lapidar do Ano Velho: velhas salvas de família, que enferrujam a um canto…

Tudo assim ia, até que o Congresso de Berlim veio instituir a regra ímpia da ocupação efetiva. E as velhas salvas tiveram de ser ocupadas, sob pena de confisco, e lá se limpou a ferrugem, nomeadamente das armas, para que à sombra da Bandeira houvesse ao menos uma secção de cipaios.

Assim se criou uma geração notável de militares, a quem se chamou de africanistas, heróis e vítimas de uma situação imposta.

Acabada a grande corrida à África, com o fim da I Guerra Mundial, lá voltaram as salvas de família a ganhar ferrugem. Basta lembrar que era mais fácil emigrar para o Brasil do que mudar a residência para Angola.

O fim da II Guerra Mundial e o movimento de descolonização levou a uma situação semelhante à do Congresso de Berlim: uma pressão externa obrigando a um esforço de ocupação.

E lá foram os novos africanistas, heróis e vítimas de uma política desajustada no tempo.

Encerrado o ciclo do Império, foram acudindo a novas imposições, tapando buracos da falta de investimento, preenchendo lacunas do sistema nacional de saúde, acudindo às catástrofes naturais, contribuindo para a prevenção de conflitos, minorando as tremendas desigualdades deste Mundo, ignorando olimpicamente as consequências da Guerra Colonial.

Como seria o diálogo do Ano Novo e Ano Velho, talvez já não sob as muralhas de Elvas, mas nas Chegadas de um Aeroporto?

Não muito diferente. Decerto não se falaria de Colónias, mas sim das Forças Armadas, também elas velhas salvas de família, enferrujando a um canto.

E, tal como os africanistas da 1.ª e 2.ª vaga, os novos heróis e vítimas da desconsideração, da desorçamentação, da desorientação, da desmotivação e da negra ingratidão.

Ou, parafraseando Eça, as Forças Armadas estão aportuguesadas.