Crónicas

E que tal salvarmos a arte de educar?

Não podemos retroceder para os tempos em que tínhamos pessoas não qualificadas nas escolas

Ficamos a conhecer no passado mês de novembro os resultados do Estudo de diagnóstico de necessidades docentes de 2021 a 2030, um trabalho levado a cabo pela Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, em colaboração com a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC).

O estudo põe a nu a cada vez mais iminente falta de docentes, um problema que já tem sido abordado pelos sindicatos e pelos partidos na Região, nomeadamente o PS, mas sempre negado pelo Governo Regional e partidos que o suportam. O contra-argumento mais invocado, a nível regional, é o de que o número de alunos e alunas tem vindo a diminuir. O que é verdade. Mas o estudo divulgado em novembro veio demonstrar que é um argumento falacioso, na medida em que se é verdade que o número global de alunos e alunas entre o pré-escolar e secundário deverá passar, na próxima década, de um milhão para 960 mil (ou seja, uma redução de 15%), também é verdade que dos 120 mil docentes em funções no ano letivo 2018/2019 deverão aposentar-se, entretanto, 39%. Isto significa que, e também segundo as conclusões do estudo, até 2031, precisaremos de recrutar 34.508 novos docentes, cerca de mais 29% da totalidade de docentes do que em 2018/ 2019. E a esta realidade a Região não escapa, bem pelo contrário: sabemos que a escassez de pessoas qualificadas levará a uma deslocação de boa parte do corpo docente para o Continente e corremos o risco de voltarmos a ter pessoas sem qualificação científica e/ou pedagógica a assegurar a lecionação nas escolas.

Esta realidade futura, num horizonte muito próximo, exige que a Região acorde rapidamente para este problema e comece a agir, apostando em várias frentes, sob pena de que quando o fizer já ser demasiado tarde.

Por um lado, investir na formação inicial. E neste âmbito, a Universidade da Madeira, tal como as restantes universidades do País, precisa voltar a investir em cursos de formação de professores/as. No nosso caso, investir nestes cursos cá poderá ser um incentivo a que novos professores e professoras permaneçam na Região depois da conclusão do seu percurso de especialização.

Por outro lado, é urgente que se repense a forma como a profissão tem sido abordada pelos vários Governos, especialmente nos últimos 20 anos. É necessário tornar a profissão mais respeitada e mais atrativa, recuperar o valor que a profissão tinha e que se perdeu com vários executivos que deliberadamente enfraqueceram a classe docente, escamoteando o facto de que são – e parafraseando Sérgio Nisa – «agentes determinantes do desenvolvimento económico e social» de qualquer País ou qualquer Região.

Logo a seguir à divulgação dos resultados do já referido diagnóstico, o Governo da República anunciou várias intenções, de entre as quais se destaca o investimento na estabilidade da profissão como um fator chave; pretende-se facultar o acesso ao quadro de escola logo no início da carreira e redimensionar os atuais quadros de zona pedagógica. Não tenho dúvidas de que este será um bom incentivo para quem leciona no território continental: há demasiadas pessoas deslocadas a centenas de quilómetros de distância de casa, pessoas que têm de pagar duas casas ou faturas astronómicas de combustível para poderem exercer a profissão que escolheram. Este problema não será tão acentuado na Região, por sermos um território muito mais pequeno. Contudo, a estabilidade profissional é igualmente importante e sabemos bem que, ano após anos, assistimos a contratações que são, na verdade, necessidades permanentes que não estão a ser devidamente preenchidas. Igualmente verdade, é que um ou uma docente contratada simplesmente não progride na carreira e permanece, ad aeternum, com um salário de início de carreira. Portanto, a questão do vínculo é importante. Mas não chega, é preciso mais.

Na minha ótica, é também urgente desburocratizar a profissão. A quantidade de documentação que nada tem que ver diretamente com a sala de aula é alucinante. A quantidade de relatórios, grelhas, justificações e justificações das justificações torna o trabalho periférico à docência numa questão central, e o momento efetivo de aprendizagem em algo cada vez mais periférico.

Por último, há que repensar a tabela salarial da profissão e a progressão.

A profissão docente, entre outras, requer especialização, requer investimento, requer atualização constante, mas tem uma tabela salarial e condições para o exercício da profissão que deixam muito a desejar, e também aqui será preciso criar melhores condições para incentivar a entrada de novos profissionais. É preciso uma remuneração mais justa e que dê perspetivas de futuro a quem escolhe a profissão. É preciso garantir que não tenham de ser os e as profissionais docentes a financiar a profissão, com a aquisição de material necessário ao seu exercício, e que vai desde computadores a projetores, colunas de som, e até mesmo extensões para poder ligar o PC às poucas tomadas disponíveis nas escolas. E é preciso garantir espaço. Para trabalhar, para guardar os materiais necessários, para não se ter de andar com tudo às costas e a atafulhar as casas de cada qual com material do trabalho.

Este diagnóstico vem confirmar o que já sabíamos, mas que tem sido sistematicamente empurrado com a barriga. Este diagnóstico significa que precisamos começar hoje – e se calhar já vamos tarde, na medida em que a formação de um ou uma docente implica cinco anos – para garantirmos que a educação na Região terá qualidade no futuro. Não podemos retroceder para os tempos em que tínhamos pessoas não qualificadas nas escolas. E não, apesar de ser o foco do atual Governo Regional, como se fosse o remédio para todos os males, a chamada «transição digital» não é suficiente. Precisamos de mais gente. Gente mais qualificada e mais especializada a quem seja facultada as condições necessárias para manter o amor à profissão. Precisamos salvar a arte de educar.