Crónicas

Cuidar desta «irritação contínua» ou «inquietação permanente»

Por estes dias, e após umas eleições altamente disputadas que colocaram a Região em polvorosa, continuo a leitura do último livro do filósofo basco Daniel Innerarity, «Uma Teoria da Democracia Complexa». Nesta obra, o pensador defende que a democracia precisa de se repensar e acompanhar a complexidade dos tempos, considerando que é necessária a atualização dos nossos conceitos políticos, pensados para uma época que já não corresponde à complexidade da realidade de hoje, quer em termos sociais, económicos e tecnológicos. O autor considera mesmo que a principal ameaça à democracia é o simplismo que a fragiliza perante uma realidade que é heterogénea e ambígua. É isto que a põe em cheque e por isso importa diagnosticarmos com rigor que democracia temos e definirmos com exatidão a democracia que queremos, a fim de mantermo-nos como uma sociedade livre e esclarecida dentro do possível.

Innerarity propõe que assumamos que a democracia é, antes de mais, «abertura, indeterminação e descontinuidade», o que a torna, nas palavras de Tocqueville, uma «inquietação permanente» e nas de Luhmann uma «irritação contínua». A democracia é um processo complexo que deve ser multiplicador de possibilidades, pelo que a sua sobrevivência depende da resistência à tentação da sua simplificação, uma simplificação que não lhe é constitutiva. É por isso que a democracia pode e deve ser entendida «como o regime da complexidade», na medida em que deve ser a «forma de governo que cultiva a discordância, protege a diversidade e a heterogeneidade, que está mais interessada em gerir a complexidade do que em reprimi-la». A democracia é, por natureza, imprevisível e complexa e joga-se num tabuleiro em que é importante manter o equilíbrio entre múltiplas vontades: as vontades de muitos e as vontades de poucos, as vontades de privilegiados e as vontades de desfavorecidos. Em última análise, a democracia tem um valor inestimável já que é essencial para um efetivo respeito pelos direitos e garantias de todos para que desdenhemos a sua importância e a deixemos cair.

É por estas razões que Innerarity considera que a tentativa de simplificação da democracia e dos seus mecanismos no quadro de uma realidade que é complexa é um erro que põe em causa a sua sobrevivência e robustez. Na verdade, o movimento tem de ser inverso: complexificar a sua arquitetura e os seus mecanismos, reconhecer os múltiplos instrumentos que a determinam e influenciam, identificar as diferentes velocidades a que se processa, diagnosticar fragilidades e perigos, atualizá-la e trazê-la para os tempos complexos em que vivemos.

É igualmente errado tentar circunscrever a democracia ao plano político e fingir que este não está exposto e intimamente relacionado com os planos económico, social, cultural, ambiental ou desportivo (entre outros). É irrealista não procurar repensar a forma como a democracia deve precaver-se perante as ameaças. Todos estes planos entrecruzam-se, influenciam-se condicionam-se, e obviamente que a Democracia não lhes é imune. Importa por isso complexificá-la por forma a conseguir reagir e responder a estas interligações, minimizando-as quando prejudiciais e inibidoras do processo democrático, potenciando-as quando benéficas para o coletivo e para a preservação da democracia e do bem comum.

Ainda no rescaldo do período eleitoral que acabamos de atravessar – e que exemplifica bem os desafios do tabuleiro democrático – importa pensar um pouco sobre o impacto que a dita «sociedade da informação» tem sobre o exercício da democracia, sobre a profusão de informação e desinformação que provoca muitas vezes, junto do cidadão e cidadã que tem de decidir, a sensação de excesso, podendo mesmo constituir-se como um mecanismo de bloqueio. Quando a informação se torna ruído, não orienta, provoca «uma espécie de aquecimento global da cidadania» cuja consequência é repulsa e confusão. Este sobreaquecimento pode ser uma das respostas possíveis para a elevada abstenção que se verificou, uma vez mais, no País e na Região. Também os votos nulos e os votos em branco poderão estar relacionados com este ambiente de saturação relativamente à informação (verdadeira e falsa) que provoca confusão. Nesta equação, que inclui os meios de comunicação tradicionais mas também, e cada vez mais, as novas formas de comunicação (em que as redes sociais e as aplicações de mensagens têm um peso cada vez mais preponderante – e muito obscuro), importa que os media tradicionais assumam a relevância que têm na legitimação do poder e a necessidade absoluta de assumirem também em pleno a sua responsabilidade ética em todo o processo. E por isso, o homem que fundou o Expresso sublinha que é vital – para o jornalismo e para a democracia – que o jornalismo mantenha «a independência editorial perante todos os poderes», cumpra os códigos de conduta em vigor e respeite os estatutos editoriais, e que aposte na autorregulação a fim de evitar «intromissões excessivas da regulação». Foi isto, julgo, que Pinto Balsemão defendeu no discurso que proferiu na cerimónia de homenagem que lhe foi feita no início de setembro: que os meios de comunicação social de qualidade são fundamentais na procura de novas formas para o exercício da democracia.

Por último, uma breve nota sobre a nossa ação enquanto cidadãos e cidadãs neste esforço conjunto para respondermos aos desafios que a democracia enfrenta no século XXI; cabe-nos «trabalhar em favor de uma cultura política mais complexa e matizada» que reflita a densidade das interações que caracterizam a nossa sociedade. E é preciso não perdermos de vista que «Para cada problema complexo existe uma resposta que é clara, simples e falsa.»*

* Henry Louis Mencken, citado por Innerarity