Crónicas

Um instante

Eu gostava de ver os dias a mingar e do entardecer com céu vermelho, enquanto rapazes e raparigas formavam pares de namorados à saída do Girassol e grupos de amigos se reuniam antes de rumar aos cafés da marina

Fez-se um calor como no começo das aulas, no tempo em que as escolas abriam em Outubro e se dava o caso do ano ser seco e sem a chuva quente que colava a roupa às costas e tornava as viagens de autocarro um suplício de ar abafado, com cheiro as pessoas, a comida e janelas transpiradas. O sol de Outono tinha fama de traiçoeiro, mas a meio dos anos 80, no apogeu dos bronzeados e dos cabelos aclarados pela maresia, ajudava a manter o espírito das férias por mais umas semanas.

As roupas leves, a cor que vinha dos dias inteiros no Lido como que nos introduziam ao horário, ao entra e sai das salas, o toque de entrada e à matéria que, cada professor, trazia para ensinar e para avaliar lá mais à frente, em dois pontos por período. Eu gostava de ver os dias a mingar e do entardecer com céu vermelho, enquanto rapazes e raparigas formavam pares de namorados à saída do Girassol e grupos de amigos se reuniam antes de rumar aos cafés da marina.

As esplanadas acabadas de estrear eram o lugar mais bem frequentado da cidade e, aos sábados, havia matinés com slows na pista da discoteca Optmist, lugar onde nunca entrei. No Laranjal não eram bem vistas as discotecas, os cafés, nem as liberdades de ir ao banho, estudar ou ir ao cinema. As raparigas ficavam faladas e a minha mãe, que se regia pelo bom senso, fez uma média ponderada e deixou-me a escola, a praia e o cinema.

Tudo não podia ser, ainda ficava falada e não valia o gasto. Ou melhor, sobretudo não valia o gasto. Em contas, daquelas que faziam esticar o dinheiro para o mês e com reserva para uma necessidade, ninguém batia a minha mãe. As discotecas e os cafés não eram de graça e davam má fama, não devia ser bom. Nem isso, nem os bailes que, todos os anos, os finalistas organizavam para angariar dinheiro para a viagem a Torremolinos ou a Benidorn.

Com isso, com o sul de Espanha, nem me permiti sonhar, mas quis muito ir à discoteca, dançar slows no escuro e uma bola de espelhos a rodar no tecto. E quis ainda mais naquele Outono de 1987, que foi a primeira vez em que não me senti extraterrestre ao cruzar a porta da entrada da escola. Talvez por estar morena, por ter melhorado as notas e por ter decidido que havia de ir estudar para a universidade.

Uns meses antes era uma miúda tímida, insegura até para pedir um bolo ao balcão da Penha d´Águia, mas naquele Outubro dos meus 16 anos começava a imaginar como seria Lisboa, a faculdade e a minha vida. E nunca fui tão nova, nem nunca tive tanto futuro como nesse momento, nesse instante.