Crónicas

O bom, o mau e o cobarde

Não virá grande mal à cidade pelo silêncio do Governo naquele dia, mas a tentativa de impedir um discurso incómodo ficará indelével no currículo de Miguel Silva Gouveia

Já ouviu falar em Vítor Escária? Provavelmente não. Escária foi personagem secundária num enredo em que José Sócrates, personagem principal, foi acusado de 31 crimes e de amealhar 24 milhões de euros, cuidadosamente arrumados na Suíça. Lembra-se do capítulo dessa história em que Portugal vendeu casas e pernil de porco à Venezuela? Escária foi o pivô desse e de outros negócios. Os pecados de Sócrates não permitem absolvição, mas Escária seria reabilitado uma e outra vez. Primeiro como assessor do Governo, demitido depois do Galpgate, agora nomeado chefe de gabinete do primeiro-ministro. Deste fado rezam duas conclusões. A nós falta-nos memória. A António Costa só lhe falta ter nome de filósofo.

O bom: Madeira PianoFest

Um pouco por todo o mundo, cancelaram-se eventos para não se cancelarem vidas. A Madeira não foi exceção. E não poderia ter sido de outra forma. Mas a hora dos cancelamentos por defeito e do confinamento austero passou. É óbvio que não voltaremos, num ápice, à informalidade em que vivíamos. Todavia, engana-se quem, alegremente, se entrega a uma distopia de distanciamento social, em busca da salvação. Um mundo assético é um mundo fictício. No nosso caso, seria um mundo órfão e avesso ao turismo. Por isso, merece reconhecimento quem não desiste perante o vírus. Felizmente, na Madeira, são muitos e em diversas áreas. É o caso da Associação de Amigos do Conservatório de Música da Madeira e do Madeira PianoFest, a sexta edição de uma iniciativa que junta grandes pianistas internacionais, em concerto, no Teatro Baltazar Dias. Ao todo, serão 5 dias de música, com destaque para o concerto de abertura que juntará a Orquestra Académica do Conservatório, dirigida pelo reconhecido Francisco Loreto, ao pianista italiano Lorenzo Di Bella. Qualquer outra edição do Madeira PianoFest exigiria um esforço de monta para levar por diante, mas organizar este festival, sob a ameaça do vírus, revela da Associação, do Robert Andres e de todos os músicos, uma fé inabalável naquilo que fazem. Em tempos de tanta incerteza, haverá maior atrevimento que esse?

O mau: Miguel Silva Gouveia

No Funchal, em pleno verão, a prometida primavera da democracia virou inverno do silêncio. No Dia da Cidade, a Câmara impediu que Pedro Calado, em representação do Governo Regional, fizesse o habitual discurso. No entanto, a palavra retirada ao Governo não é, nem de perto nem de longe, o mais grave sinal do inverno democrático imposto pelo Presidente da Câmara ao Funchal. O bloqueio da auditoria à Frente Mar Funchal, o boicote às assembleias municipais convocadas pela oposição, a recusa em discutir as iniciativas apresentadas por vereadores de outros partidos, a incapacidade de gerar consensos para a aprovação de documentos essenciais para a cidade. São todos sinais de quem adormeceu à sombra de uma maioria absoluta. O que nos muda também nos aumenta. Mas o número dois transformado em presidente diminuiu. Reduziu-se à pequena política. As placas nas sarjetas, as duas meias-mesas oferecidas a alguns comerciantes. Barricou-se nas reuniões onde tem maioria e reprova todas as propostas que não sejam suas. Depois, lamenta-se que lhe façam o mesmo quando lhe fazem falta os votos. Não virá grande mal à cidade pelo silêncio do Governo naquele dia, mas a tentativa de impedir um discurso incómodo ficará indelével no currículo de Miguel Silva Gouveia. No máximo, foi o reconhecimento da falta de argumentos para contrapor o que diria um dos seus adversários políticos. No mínimo, foi o desprezo pelos mais básicos valores democráticos que todos os anos exibe, com vaidade, de cravo ao peito. Em qualquer dos casos, não lhe ficou bem.

O cobarde: António Costa

João Soares deve estar a pensar como uma hipotética bofetada, prometida nas redes sociais, lhe valeu a demissão de ministro. Ainda por cima depois de António Costa lhe ter lembrado que os ministros, nem à mesa do café, se podem esquecer que são membros do Governo. Costa ter-se-á esquecido do seu próprio aviso quando, perante os jornalistas do Expresso, apelidou alguns médicos de cobardes. Logo, as trincheiras cavaram-se entre quem viu na conversa vazada, uma violação da privacidade, uma descontextualização premeditada, e quem nela encontrasse um ataque soez a toda uma classe, antes aplaudida nas varandas dos portugueses e agora destratada nos entrementes de uma entrevista. Por ser primeiro-ministro, Costa não tem os direitos suspensos, incluindo o da privacidade, mas tem óbvias responsabilidades acrescidas. Responsabilidades que o distinguem do cidadão comum e que, por isso, lhe impõem recato nas palavras. Sobre isso não pode haver dúvida. O que não se pode é ser paladino da liberdade de informação quando se trata de Rui Pinto e do futebol ou de Vítor Gaspar e do ministro alemão, e arauto do direito á privacidade quando o visado é o primeiro-ministro socialista. Infelizmente, a discussão sobre o putativo insulto abafou as questões essenciais. O que é que falhou no Lar de Reguengos? A que condição estamos a remeter os mais velhos no final da vida? Que papel terão as ordens profissionais na fiscalização do Estado? Trocámos o essencial pelo acessório. Mas, nem por isso deixam de haver cobardes nesta história. Quem elogia pela frente e insulta pelas costas, é o quê?

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