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Crónicas

O bom, o mau e a abandonada

Juram-nos que o Avante não é um simples festival de música. Têm razão. É um festival de ficção científica, igual ao que vimos no 1.º de Maio

A história da pandemia também se conta pela epopeia das máscaras. O Ministério da Saúde gastou 9 milhões de euros a comprar 4 milhões de máscaras. A grandeza dos números esconde a pequenez do processo. Em vez do concurso público, a escolha foi por ajuste direto. Sem maldade, claro. A rifa calhou a João Cordeiro, candidato pelo PS à Câmara de Oeiras. A justificação para o negócio? Urgência imperiosa. Em bom português, precisamos das máscaras para ontem. O prazo para a entrega? Janeiro de 2021. A justificação de João Cordeiro? Não leu bem o contrato! Há coisas que não mudam e não há máscaras que o escondam.

O bom: Banco Alimentar

Poucos imaginarão que no meio de uma zona industrial em Santo António, encurralada entre a Ribeira de São João e o campo do Andorinha, vive a única esperança de uma refeição para muitas famílias. Afinal, é para isso que lá está o Banco Alimentar – para matar a fome. E quem entra naquele enorme pavilhão, é surpreendido pelas paletes de alimentos empilhadas até ao teto e percebe, logo, o tamanho do esforço que ali é feito. 45 toneladas de alimentos entregues todos os meses. No mesmo instante, torna-se evidente que a dimensão da operação é, pelo menos, igual à do problema. Muitas vezes, fica aquém. Com os efeitos da paralisação económica a sentirem-se, será cada vez mais assim. Por isso, nos próximos tempos, o papel de instituições como o Banco Alimentar será decisivo. Projetos como a Cozinha de Afeto, da Casa do Povo de Santo António serão essenciais. Não só pelo apoio que prestam, mas também pela forma como o fazem. Ali, a ajuda aos outros não se mede, nem se publica. Pratica-se. E isso não é um pormenor. Especialmente quando vemos o Presidente da República, atrás de uma mesa de plástico branca, a distribuir refeições a sem-abrigo, enquanto sorri e pisca ao olho ao batalhão de jornalistas convocados para o espetáculo. Solidariedade não rima com publicidade. Uma palavra de apreço aos que praticam a primeira e dispensam a segunda.

O mau: 1.º de Maio

A vida de jornalista não é fácil. Rodrigo Guedes de Carvalho ter-se-á lembrado disso enquanto entrevistava a Ministra da Saúde, Marta Temido. Havia quem aplaudisse o pivô da SIC quando encerrava o Jornal da Noite com poesia ou quando fazia apelos sentidos ao cumprimento do estado de emergência. No dia em que regressou ao jornalismo, deixou de ter piada. E fê-lo para pôr a nú o atrevimento de quem, à custa do 1.º de Maio, quis brincar às manifestações e para apontar o dedo à irresponsabilidade de quem o permitiu. Marta Temido foi a primeira a ser confrontada com o tratamento especial dado à CGTP. Mil pessoas reunidas, quando a lei apenas permitia eventos com cem. Autocarros vindos de vários pontos do país, num período em que os portugueses estavam proibidos de sair dos seus concelhos. A Ministra pouco ou nada respondeu. Mas a coreografia deste 1.º de Maio, começou quando o Presidente da República negociou diretamente com a líder da CGTP o formato da festa. E acabou quando Marcelo, depois de ver 1000 pessoas na Alameda, fez de conta que não era nada com ele. Naquele dia de Maio assistimos, impávidos, à habilidade de um primeiro-ministro que consentiu um pequeno teatro, para impedir, daqui a uns meses, a verdadeira contestação. E à CGTP que trocou a reivindicação na rua, por uma caricatura na Alameda. Ao mesmo tempo, o resto do País assistia, confinado, à impunidade de grupo. A mesma impunidade que leva o Partido Comunista a insistir na Festa do Avante, quando o Governo cancelou todos os festivais de verão. Juram-nos que o Avante não é um simples festival de música. Têm razão. É um festival de ficção científica, igual ao que vimos no 1.º de Maio.

A abandonada: Confeitaria Felisberta

De pastelaria de referência a projeto eternamente adiado. Entristece, a história recente da Felisberta. Hoje cobre-se, envergonhada, com uma colorida lona de plástico, incapaz de esconder o estado desolador a que chegou. Se as paredes falassem, as da Felisberta choravam. Em 2016, o calor dos incêndios trouxe consigo a esperança de uma reabilitação. Uma nova vida anunciada, vezes sem conta, nas capas de jornal e adiada, o mesmo número de vezes, nas suas páginas interiores. Primeiro havia dinheiro do Turismo de Portugal, mas faltava a expropriação. Depois foi anunciado o projeto, mas a lona de plástico e uma porta de madeira foi a única reabilitação conhecida. Esta semana descobrimos que, afinal, ainda falta lançar o concurso público. Asseguram-nos que tudo ficará pronto até ao final do ano. Nas entrelinhas preparam-nos para a desilusão de um novo adiamento. Entretanto, o edifício definha até ao dia em que pouco haverá para recuperar. Mas a história da Felisberta não é só a de um futuro adiado, é também a de um presente duvidoso. Fará parte das funções de uma Câmara reabilitar antigas pastelarias para as concessionar aos privados? Se assim for, ficamos pelas pastelarias ou juntamos restaurantes e cafés? Nunca se fez essa discussão. O dinheiro dos outros levanta sempre poucas dúvidas.

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