Crónicas

Ainda assim

Quem vê de fora é mais um velhinha, a quem pesam os anos e a memória trai, confunde e fragiliza, alguém que tenta explicar sempre que pode que, um dia, no passado, ela e a família tiveram terras e respeito.

A minha infância apaga-se devagar na memória da minha tia Conceição, cada dia um pouco mais. A confusão começou lenta, levou uma lembrança aqui, outra ali, sem pressa até ser evidente que a senhora de cabelo branco, que passa horas no banco da paragem do autocarro não é mais a mesma que ia de férias ao Porto e não tinha medo do avião.

Não sei sequer se tem ideia desses tempos, quando voltava a casa depois de três semanas de férias em casa de senhoras amigas, com quem trocava bordados e naperons de croché. Lembro-me de como chegava carregada de toalhas turcas compradas na feira, tecidos para saias e blusas e quinquilharias para entupir as prateleiras dos móveis da sala.

Uma parte do que vinha nas malas e nos sacos era distibuída entre nós conforme o que entendia que nos fazia falta. E ela virava o mundo o contrário para que nada faltasse, nem sempre da forma mais certa. Por mim, que era a mais nova dos sobrinhos, tinha um carinho especial, até me levou de passeio ao Porto Santo e arranjava-me o cabelo quando ia de modoma na procissão.

Às vezes, quando estamos sentadas no sofá do quarto da televisão, falo disso, mas as memórias são cada vez mais ténues. Naquela casa estão mais vivas as imagens das irmãs, do pai, da mãe, das primas, dos tios, de quem tem saudades. E não percebe, qual foi a razão para ficar num mundo que lhe é estranho, até os vizinhos são outros. Não a viram antes, quando era uma senhora de 80 anos e ia de férias ao Porto.

Quem vê de fora é mais um velhinha, a quem pesam os anos e a memória trai, confunde e fragiliza, alguém que tenta explicar sempre que pode que, um dia, no passado, ela e a família tiveram terras e respeito. E traça o quadro maior e mais bonito, exagera, dá uns retoques, é uma forma de manter o orgulho, de falar de uma época sem as dores da velhice e da solidão, daquela solidão sem remédio que é sobreviver a quase todas a quem amou.

E ainda assim continua ser a minha tia Conceição. Sei que algures, entre a confusão que lhe rouba as memórias, continua a ter por mim o carinho especial com que me arranjou o cabelo para a procissão e me levou a ver o Porto Santo. Está lá, no brilho do olhar quando percebe que sou eu, a Marta.