Crónicas

O peste do pequeno

O seu menino, o seu rapaz travesso, cuja alma só ela conhecia, como ninguém

A minha tia Alice ligou-me indignada. O santo grande, o Santo António XL, saiu na procissão este ano e nem veio nas notícias. Estava triste, o santo grande sempre foi motivo de orgulho, um acontecimento que, por altura dos 750 anos da morte do padroeiro, até a minha mãe comprou uma fotografia para ter de recordação. E também vimos, ali no adro, no meio do aperto, a imagem grande a balouçar-se no andor.

Depois corremos para ver passar o meu irmão, com a farda do grupo de campismo. Lembro-me do olhar da minha mãe, toda sorridente a ver o “peste do pequeno” na procissão a fazer ares de galã. O meu irmão e a minha mãe eram assim. Discutiam, barafustavam, ela amuava, ele ia moer a zanga para cima a ameixeira amarela, mas partilhavam uma cumplicidade única.

Se havia pessoa no mundo capaz de decifrar as angústias, a rebeldia e os sonhos do meu irmão era a minha mãe, que via tudo sem levantar os olhos do bordado. Foi por isso que fomos ver a procissão do santo grande, com roupa e sapatos novos, não fosse o pequeno sentir vergonha da família agora que andava no grupo de campismo.. Acho que até calçou uns sapatos de salto, que o mundo podia estar para acabar, mas ela nunca o deixaria ficar mal.

E até eu tive um vestido novo, que me ficava apertado na barriga. Lembro-me que a minha mãe me disse que se comesse menos o problema ficava resolvido e lá me comprou o vestido, que era o número maior e o mais bonito da Loja dos Fabricantes. Não assentava muito bem, nada me assentava bem aos 11 anos, nem sequer a bandolete no cabelo, mas a minha mãe não desistia. Tentou tudo, até fazer-me tranças, só que o cabelo, como o resto do meu corpo, tinha vontade própria.

Depois de acenar ao meu irmão, de o ter visto a fazer a guarda de honra ao santo grande dentro da igreja – as raparigas em idade de casar tinham o costume de espetar alfinetes na imagem a ver se lhes trazia um noivo – fomos de autocarro para casa. Acho que por causa dos sapatos que apertavam os pés à minha mãe. E durante uma semana não se calou por causa da boa figura do “peste do pequeno” na procissão, dos elogios que chegavam do grupo de campismo. “É um engana-cristos, sabe meter uma pessoa no coração”, dizia e repetia quando perdia a paciência.

Quando os fotógrafos da cidade puseram nas montras as reportagens fotográficas do dia em que o Santo António XL saiu à rua, vasculhou todos, a ver se via o meu irmão, nos seus 14 anos, fardado e com lenço que parecia dos escuteiros. O seu menino, o seu rapaz travesso, cuja alma só ela conhecia, como ninguém.