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Sentimento de injustiça

A perceção de injustiça anda naturalmente de mãos dadas com a frustração e com a sensação de impotência para alterar o rumo dos acontecimentos. Obviamente que, perante um mesmo facto, nem todos os intervenientes (diretos ou indiretos) têm a mesma perceção sobre o que é ou não justo.

É provável que na nossa vida pessoal, profissional, social ... já nos tenhamos sentido injustiçados ou, pelo contrário, sentido que não fomos justos para com alguém. Embora aqui exista a natural tendência para recordarmos a nossa situação de “vítimas” e muito pouco a de “agressores”.

O sentimento de injustiça, muitas vezes, mais não é do que um sentimento de tristeza por não se ter conseguido alcançar os objetivos que se pretendiam, não tendo existido qualquer discriminação, adulteração de regras, ou outro qualquer tipo de influência externa que tenha influenciado o desfecho verificado. Mas, como é bem mais fácil remeter responsabilidades para terceiros do que assumir que não fomos suficientemente competentes, lá vêm o argumento: “não foi justo” ...

É claro que podemos sempre dizer que a vida não é justa e, por vezes, até é bem madrasta. Todos conhecemos pessoas que têm trágicos acidentes apesar de serem muito cuidadosas, outras que têm doenças graves apesar de terem um estilo de vida saudável, outras que parece que estão azaradas pois tudo lhes acontece sem que tenham responsabilidade direta, etc. etc. Mas não é deste tipo de injustiça que estamos a falar. Mas sim daquele que resulta do facto de alguém, de forma consciente ou inconsciente (ex., incompetência), prejudicar outro.

Com o Mundial de Futebol temos uma excelente oportunidade para identificar algumas das vertentes atrás enunciadas. A título de exemplo, há jogadores, treinadores, comentadores e público em geral a alegar injustiça no resultado quando, muitas vezes, o que aconteceu foi que não se conseguiu ser eficaz ou contrariar a estratégia utilizada pela outra equipa. É que, desde que se jogue dentro das regras e não existam erros de arbitragem (que continuam a existir apesar de agora estarem mais mitigados com a utilização do VAR), falar de justiça ou injustiça é muito relativo. Mesmo numa situação extrema em que uma equipa enviou uma dúzia de bolas ao poste e a outra na única vez que passou do meio campo marcou golo e ganhou o jogo, dificilmente se pode falar em injustiça. Houve certamente falta de eficácia e incapacidade de resolver um problema. Pode-se dizer que a sorte ou o azar também fazem parte do jogo. É verdade. Mas quem for mais competente na resolução das situações que permanentemente se colocam num jogo, terá mais probabilidades de ser o vencedor.

O jogar feio ou bonito é muito relativo. O fundamental é que se consiga rentabilizar da melhor forma as capacidades e potencialidades da equipa.

Até ao momento (última jornada da fase de grupos), a maioria das seleções, que teoricamente se apresentam como candidatas, parece muito longe de estar a conseguir rentabilizar os recursos que tem à sua disposição. Ou melhor, que nós julgamos que têm. Isto porque, em boa verdade, na maior parte das vezes, baseamos a nossa opinião nos resultados obtidos no passado por cada seleção, na notoriedade dos jogadores que vemos jogar nos seus clubes (um contexto completamente diferente), na opinião de um ou outro “iluminado da bola”, etc.

Ou seja, esquecemo-nos que no futebol, apesar da importância das individualidades que possam fazer a diferença, o que está fundamentalmente em causa é a inter-relação de duas equipas, em que cada uma tenta rentabilizar da melhor forma a divisão do trabalho pelos diferentes jogadores, que em cada momento desempenham funções específicas (que podem variar ao longo do jogo). No fundo, a equipa que conseguir o melhor domínio da dinâmica das coordenações dos seus jogadores, em função dos problemas colocados pela equipa contrária, estará mais perto de conseguir atingir os limites máximos do seu potencial. Embora isso não garanta que se ganhe, pois, o potencial dos outros pode ser maior e também o podem conseguir otimizar.

Entretanto, ao sabor dos resultados, muitas vezes mesmo sem se ver os jogos, lá se vão mandando “bitaites” e idolatrando ou denegrindo jogadores e treinadores.

No futebol, tal como na vida, quando não conseguimos ou não queremos compreender verdadeiramente as causas dos insucessos, podemos sempre, para atenuar eventuais tristezas, alegar falta de sorte e mergulhar no habitual sentimento de injustiça. Neste campo, a tradição ainda é o que era...