DNOTICIAS.PT
Crónicas

Vaguear

Entre levar o café à minha mãe e à minha tia Alice, fugia para a sala das visitas e lia às escondidas todos os livros a que deitava à mão

As meninas, todas as que havia e eu conhecia, bordavam ou faziam croché e tricô, ajeitavam-se na cozinha e limpavam e arrumavam tudo que dava gosto ir à casa dos vizinhos depois do almoço. A loiça lavada a escorrer, a roupa dobrada e tudo estava onde devia estar numa ordem que só às vezes havia na nossa casa do Laranjal. A minha mãe passava muito tempo a bordar, a atender as senhoras que vinham entregar trabalho ou buscar linhas; depois tinha o almoço e o jantar e o dia não chegava para tudo.

Esse trabalho devia ser eu a fazer, mas faltava-me o gosto e levava a tarde inteira para lavar a louça e arrumar a cozinha. A meio, entre levar o café à minha mãe e à minha tia Alice, fugia para a sala das visitas e lia às escondidas todos os livros a que deitava à mão. Os que me emprestavam, os que comprava depois de poupar o dinheiro do lanche da escola e os que vinham dos meus primos, sócios e compradores efusivos do Círculo de Leitores. Nas tardes mais bonitas, quando o sol inundava o quintal, esquecia-me das horas a tentar disputar os pintainhos às mães.

Ou vagueava pela fazenda sem propósito. Às vezes descobria um ninho ou encontrava os primeiros frutos das árvores e, na falta de melhor, ficava no terraço a ver a roupa a oscilar ao vento no longo estendal, onde uma canavieira suportava o peso de toalhas, lençóis e almofadas. E a cabeça voava dali, da curva do caminho para onde a imaginação a levasse. Podia ser um baile com um vestido comprido num palácio com lustres de cristal e escadarias reluzentes, coisas que nunca tinha visto e nem sabia sequer como seriam.

Talvez fosse uma viagem num comboio a atravessar o Quénia como no cinema, tal e qual como da vez que o meu irmão me levou a ver o África Minha. Eu passei as semanas seguintes a querer aquela vida de aventura, mas guardei segredo. As minhas tias, a minha mãe e a minha prima eram pessoas muito nervosas e pouco românticas, se lhes dissesse estragavam-me os sonhos e ainda me passavam um sermão. Uma menina ajuizada não matava a cabeça com disparates; arrumava a casa, lavava a loiça e era doce e obediente.

Atributos que as minhas tias e a minha mãe tinham dificuldade em encontrar na adolescente que respondia torto e passava a maior parte do tempo a fintar as ordens, a esconder-se para ler. Se me tivessem perguntado eu teria respondido que fugia para sonhar e que a fazenda, o terraço e a sala das visitas eram os melhores lugares. Não havia a telefonia ligada, nem as conversas, nem adultos a tentar meter na ordem tudo o que se fazia: as costas, o cabelo à frente dos olhos e, claro, até o que ia dentro da cabeça.

E eu podia passar horas com a porta encostada, a ler ou procurar as localizações dos países no globo do meu pai, mesmo que isso acabasse quase sempre da mesma maneira: com a minha a mãe a irromper pela sala adentro, a gritar um “Marta” que se ouvia em toda a vizinhança, que a loiça estava por lavar e eram quase horas de jantar. E, ainda com o dedal no dedo, ameaçava que me tirava os livros e ainda me proibia de ler, a ver se ganhava juízo. E lá ia eu, atordoada pelo susto e arrancada à força dos sonhos de aventuras pelo mundo, lavar a louça e arrumar a cozinha da casa do Laranjal. Parecia sempre tão injusto.