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Combate à violência doméstica implica novas medidas

Dia de luto nacional começa com mais uma morte

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No dia de luto nacional pelas vítimas de violência doméstica a notícia cai com estrondo. Mulher morreu na noite passada às mãos do marido em Vieira do Minho. É a décima segunda em 2019.

“Tratou-se de um homicídio de uma mulher num quadro de violência doméstica. O marido entregou-se às autoridades e está detido”, disse fonte da GNR. Segundo a mesma fonte, a GNR não tem nos seus registos qualquer histórico em relação ao casal em causa, tendo ambos cerca de 40 anos.

Uma comissão para a prevenção

Medidas de combate precisam-se. A comissão técnica multidisciplinar para a prevenção e combate à violência doméstica reúne-se hoje pela primeira vez com a presença do primeiro-ministro, António Costa.

Após a reunião, o chefe do Governo e a ministra da Justiça, Francisca van Dunem, participam numa cerimónia pública de assinatura de protocolos relacionados com gabinetes de atendimento a vítimas de violência de género.

Rui do Carmo Moreira Fernando, até agora coordenador da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica, vai agora liderar esta equipa multidisciplinar aprovada em Conselho de Ministros e publicada na quinta-feira em Diário da República.

No preâmbulo da publicação afirma-se que “os homicídios de mulheres verificados em casos de violência doméstica constituem uma realidade social intolerável e inadmissível” e, atendendo ao “elevado número de mulheres mortas neste contexto no corrente ano”, a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, o ministro da Administração Interna e a ministra da Justiça reuniram-se a 07 de fevereiro e decidiram criar esta comissão, que tem três meses para apresentar um relatório com medidas.

Contudo, esta comissão não conta com a participação das várias associações de apoio a vítimas.

Constituem a comissão técnica multidisciplinar José Manuel Palaio, representante da secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, José Miguel Santiago de Barros, representante do ministro da Administração Interna, Mónica Landeiro Rodrigues, representante da secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, assim como Luís Moreira Isidro, representante da ministra da Justiça.

Fazem ainda parte Pedro Abrantes, como representante do ministro da Educação, Sofia Borges Pereira, representante da secretária de Estado da Segurança Social, Purificação Gandra, representante da secretária de Estado da Saúde, Miguel Ângelo do Carmo, representante da Procuradoria-Geral da República e Marta Silva, representante da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

Esta comissão deve apresentar, num prazo não superior a três meses, um relatório final do qual constem propostas para prevenir e combater este problema.

No plenário da Assembleia da República será discutido um voto de pesar pelas vítimas de violência doméstica.

Tribunais especiais para julgar crimes de violência doméstica

Só que uma comissão não basta. Importa melhor justiça. Sabe-se hoje que os novos tribunais propostos pelo Governo terão competência tanto na área do Direito da Família como do Direito Criminal. Segundo o jornal Público , por lá devem passar os processos relativos às responsabilidades parentais, à violência doméstica e aos maus tratos.

A solução esbarra, no entanto, num ponto da Constituição, que impede a criação de tribunais especializados por tipo de crime. Para contornar o obstáculo, o Executivo socialista sugere que seja criado um grupo de trabalho que estude a melhor forma de pôr em prática a proposta.

Há ainda outras sugestões do Governo que devem ser ponderadas pela nova comissão técnica multidisciplinar para a melhoria da prevenção e combate à violência doméstica, presidida pelo procurador jubilado Rui do Carmo. É sugerido que se avance com um projeto-piloto que teste novas formas de recolha de prova e de contacto com os agressores - como, por exemplo, a adoção de câmaras de vídeo pelas vítimas.

É também proposto um registo dos casos de violência doméstica que chegam às unidades do Serviço Nacional de Saúde e a criação de um manual de procedimentos para as primeiras 72 horas após a sinalização de um caso.

Entre o leque de recomendações, consta também a reestruturação do serviço de informação a vítimas de violência doméstica. O objetivo é garantir o atendimento especializado 24 horas por dia e a inclusão de um serviço de apoio em situações de emergência.

Tribunais de Família decretam visitas de progenitores agressores a filhos em casas de abrigo

Mas há mais. Os Tribunais de Família estão a decretar visitas de pais a filhos em situações em que os menores estão escondidos daquele progenitor agressor em casas de abrigo, pondo em risco a segurança das vítimas, denunciou hoje a APAV.

Em entrevista à agência Lusa, o psicólogo e responsável pela área da violência de género e doméstica da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) adiantou que há um “desfasamento” entre os Tribunais de Família e Menores, onde correm os processos de regulação das responsabilidades parentais, e os Tribunais Criminais, que decidem sobre processos crime, como os de violência doméstica.

De acordo com Daniel Cotrim, na maioria das situações acompanhadas pela APAV, o Tribunal Criminal decreta uma medida de afastamento e de proteção da vítima de violência doméstica e dos filhos, ao mesmo tempo que o Tribunal de Família e Menores decreta um período de visitas do progenitor agressor aos filhos.

“Isto é muito difícil de gerir e é sobretudo muito difícil de explicar às vítimas. Como é que o mesmo Estado ou a mesma justiça que me quer proteger, ao mesmo tempo me desprotege e me coloca numa situação de risco”, questionou.

O responsável apontou que isto acontece graças à falta de comunicação entre os dois tribunais e à falta de articulação nas intervenções, em que “as pessoas são tratadas como se fossem um papel”, no meio de um “processo altamente burocratizado”.

Perante uma decisão do tribunal para que o progenitor agressor possa visitar os filhos, as vítimas “têm que cumprir, mesmo que estejam numa casa de abrigo”, já que se não cumprirem o que foi decretado pelo tribunal podem ser inibidas do poder das responsabilidades parentais ou ser novamente chamadas para uma conferência de regulação.

“O próprio agressor pode avançar com um processo por subtração de menor, por rapto ou por sequestro”, exemplificou Daniel Cotrim, acrescentando que perante uma decisão jurídica desta natureza, “as pessoas têm de a cumprir sempre porque incumprindo-a vão correr sempre algum risco”.

Nesse sentido, adiantou que a APAV aconselha sempre a que “não incumpram com aquilo que é a medida decretada pelo tribunal, ainda que não concordem com ela e não faça sentido”.

“Aquilo que muitas vezes fazemos enquanto instituição é articular com as forças de segurança para serem elas os espaços de visitas, de contacto, entre o agressor ou agressora e os filhos, filhas”, revelou Daniel Cotrim.

Contou também que tem havido “uma clara imposição” por parte dos Tribunais de Família e Menores para que aconteçam os encontros entre as crianças e jovens e os progenitores agressores.

“Chegamos ao ponto de ter algumas situações em que se quer fazer saber quais são as moradas das casas de abrigo, que são, por definição, espaços confidenciais, secretos e anónimos, para que o agressor ou a agressora possam saber em que local é que os filhos estão a residir para que aconteçam lá as visitas”, denunciou.

Na opinião do responsável, esta é uma situação que “não tem sentido absolutamente nenhum porque coloca em causa e em risco todas as pessoas que estão envolvidas no processo”, além das outras mulheres e crianças que vivam na casa de abrigo, bem como todos os funcionários.

Revelou que, nesses casos, a APAV apresenta a morada da sede da associação para efeitos de notificação, e garantiu que nunca houve nenhum caso de um progenitor agressor a visitar os filhos numa casa de abrigo da APAV.

“Não permitimos e não queremos que essas situações aconteçam dessa maneira porque o objetivo da APAV é proteger as vítimas”, sublinhou, admitindo que por vontade dos tribunais esses encontros já teriam “possivelmente” acontecido.

Menores deviam ser ouvidos na regulação parental em casos de violência doméstica

As crianças e os jovens deveriam ser ouvidos no âmbito dos processos de regulação parental em contexto de violência doméstica porque melhor do que ninguém conhecem as dinâmicas do relacionamento abusivo entre os progenitores, defendeu a APAV.

Em entrevista à agência Lusa, o psicólogo e responsável pela área da violência de género e doméstica da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) apontou que “é importante ouvir os jovens e as crianças” nos processos de regulação das responsabilidades parentais quando existe uma situação de violência doméstica “porque eles têm muitas coisas importantes para dizer”.

“Isto não acontece, não são ouvidas as crianças e os jovens neste tipo de processos”, criticou Daniel Cotrim.

De acordo com o responsável, só recentemente começou a haver alguma sensibilidade e sensibilização por parte dos magistrados para perceberem o que é que as crianças querem.

“Elas são especialistas em questões de risco e segurança porque eles conhecem muito bem quais são as dinâmicas daquele relacionamento abusivo entre o pai e a mãe”, defendeu, acrescentando que conhecem “os gatilhos” e os momentos em que o risco aumenta.

Denunciou que, na maior parte das situações acompanhadas pela APAV, há um “desfasamento” entre os Tribunais de Família e Menores, onde correm os processos de regulação das responsabilidades parentais, e os Tribunais Criminais, que decidem sobre processos crime, como os de violência doméstica.

Este “desfasamento” faz com que o Tribunal Criminal decrete uma medida de afastamento e de proteção da vítima de violência doméstica e dos filhos, ao mesmo tempo que o Tribunal de Família e Menores decreta um período de visitas do progenitor agressor aos filhos.

Revelou que nesses casos são muitas vezes os próprios filhos quem não quer esse contacto, seja pelo medo que o agressor descubra onde é que eles estão agora a viver, seja por recearem que a situação de violência volte a repetir-se.

“Ouvimos muitas vezes dos jovens que têm medo destas visitas porque não se sentem como os importantes da visita, mas sim que servem para ser mensageiros de um pedido de reconciliação por parte do agressor, pedindo para suspender o processo ou voltar para casa”, disse Daniel Cotrim.

Acrescentou que o “grau de risco é complicado” e que muitas vezes, sobretudo nas primeiras visitas do progenitor agressor aos filhos, “o foco não está no contacto afetivo”.

“Existirão alguns que sim, mas, na maioria, o primeiro contacto é para perceber onde está a mãe, para perceber onde está a outra pessoa”, apontou.

Como consequência, depois destas visitas, os “jovens dizem que sentiram que não ganharam nada com aquilo, pelo contrário”.

“Sentem que a sua vontade não foi ouvida e não foi tida em conta”, acrescentou.

Criticou, por isso, que quando se fala do superior interesse da criança, muitas vezes esteja em causa “o superior interesse dos adultos, dos pais ou das mães e no que querem atingir através dos filhos”.

Na opinião de Daniel Cotrim, “nunca é uma coisa boa para os jovens” as visitas do progenitor agressor, sublinhando que, em muitos casos, são os filhos que pressionam para uma fuga do ambiente de violência e da relação abusiva.

Defendeu, por isso, que é “importante ouvir o que as crianças e os jovens têm a dizer neste tipo de situações” e que é “fundamental” que os Tribunais de Família e Menores e os Tribunais Criminais comuniquem.

“A violência doméstica é um crime, mas é um crime que ocorre no seio da família. Não faz sentido cada um deles [tribunais] funcionar como se fossem duas quintas separadas”, concluiu.