Crónicas

Verão cor de coca-cola

A minha mãe mandava, eu respondia, depois gritávamos e as portas aguentavam nas dobradiças quando me fechava no quarto, entre o choro, a raiva, a vergonha

A adolescência apanhou-me em 1983, tinha 12 anos, 10 quilos a mais, o corpo de um adulto e a infelicidade de viver o paradoxo de um país tomado pelo FMI e rendido ao consumo e à publicidade, que prometia todos os sonhos num par de calças de ganga e numa coca-cola. E, como se não bastassem as hormonas e a inflação, coube-me atravessar o período mais estranho da minha vida numa família tradicional, que cedia pouco e discutia muito e, no fim, valia a vontade da minha mãe.

A minha mãe mandava, eu respondia, depois gritávamos e as portas aguentavam nas dobradiças quando me fechava no quarto, entre o choro, a raiva, a vergonha. Eu morria de vergonha com quase tudo: não saber atender o telefone sem falar alto, ao pedir um bolo ao empregado da pastelaria ou ouvir a minha mãe a falar como se eu não estivesse presente. Ai que a pequena é grande, ai que vai ser gorda, ai que vai parecer velha cedo, ai que não sai à mãe e não é bem falada.

E eu cada vez mais ensimesmada, escondida atrás do cabelo que cobria parte da cara para dar estilo, sem assunto para as vizinhas, as senhoras dos bordados, mais as primas, mais ou menos em pânico quando apareciam crianças pequenas e diziam para pegar ao colo. O que era uma manobra com armadilha já que logo a seguir vinha o comentário demolidor de qualquer dia tem o neto. Não era coisa que encaixasse bem aos 13 anos, quando os rapazes ainda me pareciam tolos ou assustadores.

Por quatro anos carreguei estes pesos que, de algum modo, me faziam sentir diminuída. Por ser gorda, por não ter a roupa, por corar quando falavam comigo, por um detalhe que parecia sempre estragar o momento. Se não tivesse rido alto, se tivesse ficado calada, se tivesse falado mais, se pudesse ir às matinés na discoteca e à sessão das quatro no cinema num sábado à tarde. A perfeição fugia-me das mãos como quando tentava bater um texto à máquina nas aulas de dactilografia.

Lembro-me de me sentir enredada nestes quês todos e lembro-me que, um dia, deixei de estar. Não sei como ao certo, mas cortei o cabelo, dei umas voltas às roupas, emagreci e deixei de gritar com a minha mãe. Quando chegou o Verão de 1987, desencantei um biquini em segunda mão e fiz-me à Estrada Monumental como os outros adolescentes a caminho do Lido. E foi como se a minha vida começasse aí, nesse momento, nesses meses de calor, com mar, sol e bronzeador com coca-cola. Eu podia ser o que quisesse, não sei se voltei a ser tão livre.