Crónicas

«Tchau querida»

E nós, por cá, no arquipélago? Está a nossa democracia devidamente «regionalizada»? Que dizer de uma dinâmica política em que a oposição é sistematicamente diabolizada por parte dos partidos que suportam o Governo Regional?

De que maneira, meu caro companheiro, se origina a tirania?Pois é quase evidente que provém de uma alteração da democracia.

Platão, A República, Livro VIII

Muito recentemente vi o documentário brasileiro A Democracia em Vertigem, de Petra Costa, nomeado para um óscar na categoria de melhor documentário de longa metragem.

O filme põe em perspetiva a visão da realizadora relativamente à erosão da democracia no Brasil, expondo-a aos ataques dos populismos. Ao vermos a sucessão de acontecimentos (que acompanhamos ao longo dos anos) apercebemo-nos de que assistimos a tudo sem percecionarmos verdadeiramente o perigo. Impressiona (re)ver as dinâmicas no Congresso Brasileiro durante o processo de impeachment da Presidente Dilma. (Re)ver a promiscuidade entre religião e política, o tom evangelizador e inquisitorial de deputados e deputadas federais que invocaram o nome de Deus em vão para legitimar o seu discurso de ódio. A promiscuidade entre as grandes companhias e os poderes político e judicial.

Chocou-me rever os cartazes com a expressão «Tchau querida», a fulanização de todo o processo, a raiva mal contida perante o facto de ser uma mulher a ocupar a presidência. Uma mulher que não é, nem foi, recatada ou do lar. Comoveu-me ouvir Dilma Rousseff falar em estratégias de resiliência perante o horror da tortura (foi opositora à ditadura). É perturbador ouvir Bolsonaro, até aí um deputado medíocre, bolsar elogios e dedicar o seu voto contra Dilma a Carlos Ustra, um torturador do regime, «o pavor de Dilma». Uma boa parte dos brasileiros e brasileiras não sonhava sequer que aquela figura sinistra seria eleita Presidente do Brasil dois anos depois, com uma grande ajuda de um poder judicial totalmente de joelhos perante um juiz que usou o poder que tinha para manipular – até as eleições.

Petra Costa, que narra na primeira pessoa todo o documentário, aponta para a fragilidade da democracia brasileira e para a forma como a sua morte aconteceu de forma progressiva. Também Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, no livro Como Morrem as Democracias, chamam a atenção para o facto de as democracias morrerem de forma lenta e para a forma como os seus assassinos usam os mecanismos democráticos para as matar. E se dúvidas houvesse, lembremos as palavras de Goebbels, Ministro da Propaganda do Regime Nazi: «Isto será sempre uma das melhores piadas da democracia, o facto de ter dado aos seus inimigos mortais os meios para a destruírem.»

Dizem-nos Levitsky e Ziblatt que «Hoje, o retrocesso democrático começa nas urnas». Olhamos para o Brasil, para os Estados Unidos, para a Rússia, para a Hungria, para a Venezuela, e reconhecemos este alerta. Reconhecemos, abanamos a cabeça e julgamo-nos a salvo, graças a Deus. Mas estaremos? Estará a nossa jovem e frágil democracia a salvo perante o surgimento de partidos que veiculam princípios antidemocráticos? Estará a salvo de juízes que se consideram acima da lei? Estará a salvo da eleição de candidatos/s populistas e autocratas?

E nós, por cá, no arquipélago? Está a nossa democracia devidamente «regionalizada»? Que dizer de uma dinâmica política em que a oposição é sistematicamente diabolizada por parte dos partidos que suportam o Governo Regional? Quando deputados do PSD-Madeira, de forma deliberada e mentirosa, afirmam que Portugal é governado por um partido semelhante ao regime de Maduro? Quando procuram colar um regime autocrático ao PS-Madeira – e quando o fizeram durante a campanha para as regionais como tática de exploração do medo?

Que dizer da saúde democrática de uma Região cujo Governo tem um Secretário da Agricultura e Desenvolvimento Rural que afirma que as Casas do Povo, criadas em pleno Estado Novo, são o berço da democracia? Que dizer quando um governo procura esvaziar as competências das juntas de freguesia que não são da sua «cor política» através da instrumentalização das Casas do Povo?

Que dizer da capacidade de diálogo de um Presidente do Governo Regional que reage à contestação da classe médica perante uma nomeação que deveria ser técnica (e que foi inabilmente transformada em nomeação política) com um «Quem quiser que se demita»? Dos dotes negociais de um Secretário da Saúde que se recusa a aceitar a decisão das médicas e médicos desafiados a demitirem-se? Que diz esperar que, mais cedo ou mais tarde, se resignem?

Que dizer de uma bancada PSD-CDS que, em sede de Orçamento Regional, e perante mais de 200 propostas dos partidos da oposição, chumba todas à exceção de uma?

Que dizer da maturidade democrática de um Governo Regional que alimenta permanentemente um suposto contencioso com o Estado e que procura confundir os cidadãos e cidadãs relativamente ao que são as suas competências?

Temos mesmo a certeza que zelamos pela nossa jovem e frágil democracia?

Petra Costa, a realizadora de Democracia em Vertigem não ganhou o Óscar, mas ganhou a inimizade do Presidente do Brasil por ter denunciado o desmatamento da Amazónia, os ataques aos povos indígenas e a atuação violenta da polícia no Rio de Janeiro. O Presidente decretou que a cineasta é «anti-Brasil», porque um bom autocrata faz por confundir a oposição ao seu partido ou a crítica ao seu Governo como sendo críticas contra o País – ou contra a Região. Um bom autocrata procura manipular as pessoas, cultivando a ideia de que os seus adversários são inimigos do povo.

Espero que estejamos suficientemente atentos/as aos sinais de erosão da nossa própria democracia. Que tenhamos a capacidade para identificar comportamentos de eleitos que subvertem o processo que os levou ao poder. Que estejamos alerta para tentativas de negar legitimidade democrática aos adversários, para tentativas de restrição de direitos políticos ou civis, para a tolerância ou encorajamento de determinados tipos de violência, para a restrição da liberdade de organizações cívicas ou políticas.

Espero que tenhamos maturidade suficiente para não sermos nós a acenar, à nossa Democracia, cartazes com a expressão «Tchau Querida.»