Crónicas

Renovar

Na minha rua continua a passar o amolador e o seu instrumento faz-nos companhia ao Sábado de manhã

As folhas que serpenteiam com a ajuda do vento, enquanto calcorreio a cidade que me acolhe, levam-me para memórias de Outono. Será para muitos a decadência do fim do Verão, o início de uma longa espera até que os raios de Sol voltem a iluminar os nossos dias. Esta estação sempre foi a menos estimada, enclausurada num segundo plano, personagem secundária que serva apenas de passagem. Os dias ficam mais frios mas acima de tudo mais ventosos, o corpo começa a sentir os primeiros efeitos da alteração climática e os cobertores, mantas e dvd´s saltam num ápice do armário como pipocas para nos afagar a alma e dar um pouco mais de aconchego aos nossos dias.

No Brasil e em Moçambique por onde passei, as pessoas têm tal aversão ao inicio do frio (que não é sequer comparável com o de cá) que por vezes hibernam e só voltam a sair da “toca” quando o bom tempo regressa. Mas por cá também os há assim. Nas ruas veem-se menos, as noites são mais solitárias e aquela apetência pela rua troca-se com facilidade pelo conforto do sofá. Esquecemo-nos mais uns dos outros e a nossa casa passa a ser refugio apenas dos mais especiais quando à vontade para isso, embora muitas vezes seja uma estação feita de maratonas a sós, entre um sentimento mais depressivo e alguns doces para acompanhar. Para os que têm a sorte de conviver de perto com a família esse marasmo é atenuado e dá-lhes os tempos perfeitos para interromper as vidas atarefadas que carregam às costas.

Trocam-se os gelados pelas castanhas assadas o que no meu caso até agradeço. Passamos mais tempo no nosso refugio e damos mais valor a quem tem lareiras, não tanto pelo calor que hoje em dia é substituído por modernos aquecedores mas pela companhia que ela faz. O crepitar da lenha, a estratégia de a acender e a manutenção de um ritmo saudável sempre me fascinaram. Incumbiram-me dessa tarefa desde cedo e acho que hoje em dia sou um especialista no tema. Vale o que vale. Somos mais de menos e somos menos de mais. Quero com isto dizer que somos menos do Mundo e nesta altura do ano criamos uma espécie de núcleo restrito a quem abrimos a porta de casa. Somos mais dos nossos. É a estação dos afetos mais genuínos, do calor mais humano, de nos definirmos e termos tempo para pensar no que queremos. No Verão é tudo muito. Tudo ao mesmo tempo e sem espaço para decisões importantes.

Na minha rua continua a passar o amolador e o seu instrumento faz-nos companhia ao Sábado de manhã. É o tempo em que as folhas caem das árvores e por isso mesmo uma altura de renovação também pessoal. Recomeça tudo e começam-se a fazer planos para o Natal. Volta a comida de tacho que eu tanto adoro, os pratos de conforto como a feijoada ou o rancho. Parece que o nosso espírito precisa de um reforço de sabor para sair mais satisfeito à rua. Por isso comemos mais e com mais prazer. Dá-se mais importância a quem se tem ao lado, simplesmente por estar ali. A companhia que nos apoia e que no final do dia partilha connosco um sentimento mais puro. Aqueles de quem gostamos fazem-nos mais falta e temos normalmente mais predisposição para as recordações e os saudosismos. O silêncio ganha espaço ao barulho.

Sinto nestes momentos uma enorme frustração por não termos ate aqui conseguido conquistar um modelo de sociedade que não abandone pessoas. Que não as deixe sozinhas, nem ao frio ou à chuva. Envergonho-me de por vezes não poder ajudar mais e de sentir que existe tanta gente por aí que precisa do nosso apoio e que merecia também um conforto. Este ano coincidiu o recomeço da escola com o de uma nova época política com várias eleições para orgãos regionais e nacionais. Que também esses se saibam renovar e transformar verdadeiramente a vida, sobretudo a dos que mais precisam. Dos que nada têm. Dos que o Outono lhes custa mais a passar.