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Memórias de um educador de férias

Se não consigo salvar a língua portuguesa, por que me hei de preocupar com a língua dos outros, ainda por cima de raízes bem bárbaras.

Há muitos anos, fui dar com o meu filho a ler histórias do Tio Patinhas e dos seus companheiros de Petrópolis às onze da noite, em vésperas de teste de Inglês, com tantos verbos irregulares por saber e as regras de gramática a tentar equilibrar-se no extremo da mesa de trabalho antes de se estatelarem no chão. Num raro momento de lucidez, percebi que não poderia ser eu a evitar o estrondo que a queda daquela gramática provocaria. Quis-me, o mais rapidamente possível, longe de tal desastre, mas sem deixar de cumprir a minha obrigação de adulto: duas ou três frases de circunstância e ala que se faz tarde. Se não consigo salvar a língua portuguesa, por que me hei de preocupar com a língua dos outros, ainda por cima de raízes bem bárbaras. Felizmente, a nossa é de outra estirpe, o Latim, expressão suprema dos civilizadores e a divulgadora de uma nova ordem mundial. Para nos consolar quanto à pureza dos nossos genes ou para impressionar estrangeiros incultos, este é um argumento que deve ser brandido, qual dardo certeiro, mas a verdade, bem o sabemos, é outra: a língua que nos ficou dos romanos envergonharia o mais miserável dos habitantes da Urbs. Os romanos não nos deixaram língua nenhuma, os povos rudes e ignaros da Ibéria é que roubaram aos invasores o que julgavam ser pérolas, mas não passavam de imitações feitas das mais vulgares das pedras. A sorte foi que os romanos andavam tão atarefados com o que lhes trazia proveito que nem perceberam que os grunhidos dos autóctones da Lusitânia era a sua língua corrompida.

Deixemo-nos de divagações e voltemos à minha retirada estratégica do campo de batalha, o que evitou um combate corpo-a-corpo com um soldado que sabia aproveitar a escola para o desenvolvimento de uma oratória evasiva, que, certamente será essencial para o seu sucesso futuro, mas que, nas aulas, de pouco lhe servia.

Pelo menos, temos em comum o Tio Patinhas e companhia. Foram eles que começaram a revelar-me a grandeza da língua portuguesa e a sua maleabilidade consoante os falantes. Foram eles que me ensinaram tantas palavras de que nunca tinha ouvido falar, como “carona”, “grana” e tantas outras que entretanto se tornaram familiares e passaram a constituir parte do meu reportório lexical. Certamente, ficaria empobrecido como utilizador da língua-mãe se não se tivesse dado o feliz encontro com esta súcia. Então, como pôde desagradar-me a leitura de tal literatura em detrimento do estudo monótono dos verbos de Inglês e do seu uso nas formas afirmativa, negativa e interrogativa? Como pude querer para ele o que não quis para mim?