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Até sempre, Mestre!

É um daqueles momentos que uma pessoa não quer encarar e um desses artigos que uma pessoa nunca quer escrever, afastando futilmente a mera ideia de que esse dia de certeza virá. Mas esse dia veio, inexorável e sorrateiramente, e fez-me, fez todos cujas vidas foram influenciadas pela sua atitude de rigor, coerência e abnegação do “eu” perante o Compositor e a sua Obra, fez-nos parar um instante e olhar para trás, para os momentos vividos com ele na procura da honestidade artística, na procura da Verdade e do Belo, para os tempos que nunca serão esquecidos, e sentir a flama que acendeu em nós e que se autossustenta, perpetua e nutre pelo seu exemplo, demonstrado em todos os momentos da sua ação pedagógica e humana.

A sua vida foi uma vida de dedicação singular, para ele totalmente natural, espontânea e instintiva, aos ideais que para ele se tornaram o maná, o alimento espiritual que deu sentido à sua vida. Um dia entrei para a aula com ele, já no final do dia, e ele estava com ar de alguém que acabou de testemunhar uma revelação, cansado mas sorridente e extremamente espiritual. Exclamou: “Consegui! Estive a ver este compasso o dia inteiro e consegui resolvê-lo!” Humildade e entrega de um pianista que diariamente abordava obras mais complexas do repertório pianístico mas a quem não custava nada dedicar um dia inteiro a um instante sonoro cujo sentido musical e estético resolveu explorar de maneira tão exaustiva!

Tive imensa sorte por ele ter guardado um lugar na sua classe para mim durante quatro anos, enquanto eu estive à procura de uma bolsa que me permitisse deslocar-se aos Estados Unidos. Tive imensa sorte por ele me ter acolhido como um membro da família e mantido uma atitude benevolente e encorajadora enquanto eu estava a reconfigurar a minha vida, atitude profissional e postura artística. Tive sorte por ele ter partilhado comigo muitas verdades humanas e artísticas para as quais eu, mesmo tendo 30 e tal anos, ainda não estava preparado. Dizia ele: “Isto agora para ti não deve fazer sentido, mas daqui a 9-10 anos já vai fazer.” E tinha toda a razão. Já faz.

A sua perspicácia e a capacidade de perceber os caminhos misteriosos do desenvolvimento pessoal e artístico às vezes não condiziam com a sua maneira nem sempre abertamente empática ou emotiva. Mas por detrás da sua expressão contida e refreada residia uma inteligência invulgar e uma compaixão que sabia apreciar o sacrifício, a dedicação e a reverência exibidos perante uma obra de arte, uma obra musical, um compositor.

Nas últimas décadas, dizia que cada vez menos lhe apetecia tocar concertos com orquestra, pois já quase ninguém disponha do tempo de ensaios suficiente e da atenção, necessários para abordar a complexidade da interação musical com a seriedade e profundidade das quais ele não prescindia.

Nunca foi disposto de abdicar do tempo necessário para atingir a fruição musical e estética total da obra estudada e essa sua persistência, nos tempos fugazes e efémeros de hoje, fez de sua arte e de sua pessoa um fenómeno intemporal que ilumina para todos aquele caminho interminável que é a procura de um Ideal, da quinta-essência da arte, às vezes tão perto, mas sempre muito longe. “Per aspera ad astra”. As espinhas, reais ou figurativas, ferrem, mas a caminhada é que eleva a alma e faz o espírito, e a arte, pairar. Sequeira Costa concluiu a sua caminhada transcendente. Até sempre, Mestre, e obrigado por ter iluminado o caminho!