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“Medo e ganância continuam” nos mercados, 90 anos após ‘crash’ de 1929

A 24 de outubro de 1929, que ficou conhecido como a quinta-feira negra, o Dow Jones afundou 11% na abertura da sessão, dando início ao ‘crash’ de Wall Street

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Os economistas ouvidos pela Lusa descartam a possibilidade de uma nova queda da bolsa norte-americana, como em outubro de 1929, apesar dos sinais de nova recessão, pelo facto de os bancos centrais estarem mais dispostos a intervir.

“Não creio que seja possível porque hoje em dia temos bancos centrais que perceberam a importância dos mercados financeiros e estão dispostos a intervir em caso de queda acentuada nos preços”, comentou Pedro Lino, economista da Dif Broker e da Optimize, em declarações à Lusa.

“No contexto atual parece-me pouco provável”, afirmou também Filipe Garcia, economista da IMF -- Informação de Mercados Financeiros, acrescentando que, apesar dos “sinais um pouco por todo o lado de que pode haver uma recessão, não parece haver indicadores objetivos que levem a pensar num ‘crash’”.

“Apesar de a economia nos dar indícios de abrandamento, não prevemos que venha a acontecer uma crise tão acentuada como a de 1929”, comentou, no mesmo sentido, Nuno Caetano, analista da corretora Infinox.

O especialista recordou que a quinta-feira negra, em 24 de outubro de 1929, quando o índice industrial Dow Jones afundou 11% na abertura da sessão, ocorreu depois de uma década de grande prosperidade norte-americana, “onde a produção industrial e as exportações cresceram muitíssimo durante a Primeira Grande Guerra”.

“Com a Europa devastada, os Estados Unidos tiveram condições para prosperar bastante durante os loucos anos 20”, frisou, acrescentando que “o enquadramento económico atual é bastante diferente do de há 90 anos”.

“Há que ressalvar que vivemos numa economia mais global, com potências Orientais em forte crescimento, e que vivemos também uma crise há 10 anos”, acrescentou Nuno Caetano.

Em 28 e 29 de outubro de 1929, que ficaram na história como a segunda e terça-feira negras, o Dow Jones desceu mais de 13% e 11%, respetivamente.

Questionados sobre se estamos a aproximar-nos de um novo tombo nas bolsas, Filipe Garcia respondeu que, “em rigor, não há indicações objetivas de que estejamos perto de um ‘crash’”.

O economista explicou que “a euforia à volta da bolsa é quase inexistente e, segundo as métricas disponíveis, os níveis de alavancagem estão longe de níveis já observados”, apesar de referir que “é verdade que os índices de Nova Iorque estão perto de máximos, mas a maioria das ações que os compõe não estão”.

“Por outro lado, na Europa e Ásia estamos longe de máximos e de euforia. Claro que poderemos ter uma queda das ações em breve, mas não um ‘crash’ na perspetiva de que temos uma bolha e que está prestes a esvaziar. Não há, objetivamente, nada de factual que nos leve a essa conclusão”, concluiu Filipe Garcia.

Também Pedro Lino não acredita que possa ocorrer um novo ‘crash’, “apesar dos mercados estarem a transacionar em níveis elevados”.

“As correções que temos vindo a assistir nos últimos três anos, são por vezes violentas, pela rapidez como ocorrem, mas não têm excedido os 20%”, indicou Pedro Lino.

Nuno Caetano referiu, por seu turno, que “as economias vivem de ciclos e, depois de uma década da última grande crise e de crescimento económico pós-crise, estamos perante alguns indicadores que nos fazem acreditar que possamos estar perante um período mais difícil para a economia”.

Questionados sobre a razão pela qual outubro é o mês no qual se têm verificado as grandes quedas na bolsa, Pedro Lino indicou que “outubro tem vindo a ser o mês onde os ‘crashes’ se têm verificado, mas não é, estatisticamente falando, um mês de perdas, bem pelo contrário”.

O economista recordou que, desde 1950, houve 42 anos de subidas e 27 descidas do índice S&P 500 em outubro, sendo que o retorno médio, em outubro, nos últimos 69 anos foi de 0,66%.

“No entanto é o mês que regista maior volatilidade no ano, e 2019 não será exceção até pelo que já vemos do mês. Existe esta carga psicológica no mês de outubro uma vez que os maiores ‘crashes’ foram verificados neste mês”, adiantou o economista da Dif Broker e da Optimize.

“A ideia que tenho é que se trata sobretudo de um viés por terem ocorrido em outubro algumas quedas importantes como em 1929, 1987 e 2008. Mas já houve quedas importantes noutros meses e outubro com bons períodos de alta. Há quem atribua um eventual efeito outubro -- sobretudo na volatilidade -- à existência de eleições nos EUA de dois em dois anos”, comentou Filipe Garcia.

No mesmo sentido, também Nuno Caetano não encontra “uma correlação direta com as grandes perdas nas bolsas” ocorrerem no mês de outubro”, recordando que “uma das maiores crises financeiras da história, a crise do ‘subprime’, desencadeou-se no mês de agosto”, sendo o dia 09 de agosto de 2007 “a data consensual para o início da crise financeira que abalou o mundo na última década”.

Os economistas consideram que não há grandes mudanças no perfil dos investidores, 90 anos após a grande queda de Wall Street, mas democratizou-se o acesso aos mercados e reforçaram-se os mecanismos de regulação.

“A condição humana é igual. Os mesmos defeitos como o medo ou a ganância continuam presentes. Mas também as qualidades”, comentou Filipe Garcia, economista da IMF -- Informação de Mercados Financeiros, à Lusa.

“Não me parece que haja assim tantas diferenças entre os investidores propriamente ditos. O que existe é mais sofisticação e tecnologia em tudo e não é diferente nos mercados, instrumentos, etc. A maior diferença poderá ser, eventualmente que os Estados têm mais poder e influência na economia e isso acaba por influenciar os investidores”, acrescentou Filipe Garcia.

Pedro Lino, economista da Dif Broker e da Optimize, também referiu, à Lusa, que “os investidores hoje têm acesso a ferramentas que eram impensáveis em 1929, como alavancagem em tempo real, negociação algorítmica, investimento global em tempo real e com uma única conta”.

“Esta democratização no acesso aos mercados e a baixo custo é o que permite qualquer pessoa investir no mercado”, acrescentou.

No mesmo sentido, Nuno Caetano, analista da corretora Infinox, referiu que “o acesso mais facilitado à informação permite que os investidores tenham uma maior noção da realidade”, sendo que “os mercados também se movem com um maior dinamismo” devido àquele fator.

“Fatores como a Inteligência Artificial e a sua utilização nos mercados e nas suas operações faz também acentuar as diferenças entre investidor atual e o investidor de 1929. Hoje em dia, temos muitos investidores a operar também com o auxílio da robótica, o que, por si só, muda radicalmente o paradigma do tipo de investidor de hoje em dia, comparado com o investidor de 1929”, acrescentou.

Este mês assinalam-se os 90 anos do grande ‘crash’ de Wall Street, no final de outubro de 1929, que esteve na origem do período designado ‘Grande Depressão’.

Questionados sobre o que mudou nos últimos 90 anos, Nuno Caetano comentou que “a Internet veio democratizar o acesso aos mercados, onde qualquer investidor de retalho consegue aceder através de corretoras e das suas plataformas”, permitindo que “mais pessoas possam aceder a produtos de geografias diferentes, e operar a qualquer momento e de qualquer lugar, através dos muitos produtos derivados que se têm vindo a criar”.

“Estamos a falar de um período da história com uma guerra mundial, uma guerra fria, mudanças enormes ao nível dos sistemas monetários e cambiais, emergência da União Europeia, etc. e que simplesmente não se pode resumir porque são dezenas de itens de diferenças verdadeiramente importantes”, comentou Filipe Garcia.

Segundo Pedro Lino, “por um lado, existe agora mais risco, mas por outro há uma concertação de bancos centrais mundiais, que nunca vimos”.

Os economistas sondados pela Lusa estão de acordo que existe atualmente uma maior regulação dos mercados do que há 90 anos.

“Há com certeza uma maior regulação e os reguladores são mais atentos e ativos. No entanto, não creio que se tenha perdido por completo o conflito de interesses que muitas vezes há entre o regulador e os agentes financeiros”, afirmou Nuno Caetano.

“Sem dúvida que a regulação aumentou muito e decorre do aumento do poder/influência do Estado em todos os aspetos da vida. Essa regulamentação tem aumentado nas últimas décadas”, afirmou Filipe Garcia.

O economista acrescentou que, a regulamentação, “em parte, é positiva porque impede alguns abusos primários, força o cumprimento de algumas práticas virtuosas e justas, mas também retira liquidez e eficiência aos mercados quando exagerada”.

“E há indícios que já possamos ter ultrapassado a fronteira da razoabilidade porque vemos um progressivo afastamento de instituições e particulares dos mercados, preferindo fazer negócios fora de bolsa”, alertou.

Questionados sobre se consideram que pode repetir-se em breve uma nova recessão como a que se registou há pouco mais de 10 anos, Pedro Lino respondeu que, “caso os bancos centrais não estivessem de sobreaviso, poderia acontecer”.

“No entanto está claro que quer governos quer bancos centrais não irão deixar acontecer uma nova Grande Recessão”, frisou.

“No último ano temos ouvido alguns economistas a alertarem para o forte abrandamento de algumas economias mundiais, e como resposta temos promessas de estímulos orçamentais e monetários”, afirmou o economista, acrescentando que “é mais natural que o ciclo continue por mais alguns anos, suportado na inovação tecnológica nos próximos cinco anos”.

Nuno Caetano referiu também que “as recentes tensões entre os Estados Unidos e a China escalou e elevou as preocupações para uma possível recessão económica”, com os juros baixos e a curva das “yields” a reforçar aquela ideia, assim como a decisão dos bancos centrais em cortar os juros.

O analista da Infinox apontou ainda o facto de a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ter descido a previsão do crescimento mundial, para o menor crescimento desde a crise de 2008, além da incerteza provocada pelo ‘Brexit’ e pela guerra comercial.