A vida sem anestesia
A dor, fosse física ou emocional, vivia-se como aparecia, chegava aos ossos e dava a impressão que nos ia partir
A vida sem anestesia define a minha adolescência e não é uma maneira de contar a história da menina a quem disseram que, dali em diante, tinha de apanhar o autocarro para ir e regressar da escola. Antes da minha mãe me comprar um relógio de pulso para não falhar o horário do Jamboto, via Álamos ou via Santo António, já me tinham cosido a testa a sangue frio no hospital e a lista incluía os dentes. O doutor Luís de Gouveia cobrava mais pela injecção da anestesia e aguentava bem as lágrimas e os gritos que desciam do consultório no sétimo andar até ao rés-do-chão.
Não me calharam dentes fortes e, aos oito anos, conhecia bem a tormenta de estar na cadeira do dentista e de ter, num plano mais afastado, a mãe, uma tia ou a prima a olhar-me como se fosse um animal selvagem. Na versão das mulheres que cuidavam e tratavam de mim espernear e gritar por causa de uma broca a tocar num nervo não era digno, nem próprio de uma rapariga educada. Já era vergonha suficiente chegar com o dinheiro contado, o que não me servia de consolo. Os dentes eram meus, a dor também e aquelas eram só as primeiras lições sobre coragem e dignidade.
A instrução acontecia todos os dias, em casa, onde os adultos soltavam as crianças pelas fazendas, pelos quintais e pelo caminho e não eram considerados os joelhos esfolados e acidentes menores. O assunto só merecia atenção se fosse na cabeça que, no Laranjal, as mães tinham muito respeito pelos traumatismos cranianos. O resto era parte do crescimento e as mães, os pais e os outros adultos tentavam sobreviver, o melhor que sabiam, desde que acordavam até à hora que iam dormir. E, num lugar assim, ter medo do escuro ou viver a angústia de mudar de escola eram questões sem importância.
A dor, fosse física ou emocional, vivia-se como aparecia, chegava aos ossos e dava a impressão que nos ia partir. Foi mais ou menos assim que me senti quando, depois da quarta classe, a minha mãe me matriculou no ciclo e disse que, dali diante, ia de autocarro para escola. Além do relógio de pulso, comprou-me um guarda-chuva para andar na pasta com os livros e cadernos e sentou-se na beira da minha cama para explicar como ia ser tudo, da paragem do autocarro, aos rapazes e ao meu corpo que ia mudar. A informação veio de rompante, quando ainda me tentava habituar a ideia de ter 10 professores de 10 disciplinas diferentes.
O estranho foi perceber que ter 10 professores não seria o mais esquisito que me iria acontecer no ciclo preparatório. Algures, durante esse tempo e segundo a minha mãe, o meu corpo, aquele mesmo que estava na beira da cama, ia mudar para ficar apto a ter filhos. E isso ia acontecer sem a minha permissão, em breve e muito antes de ser uma mulher adulta. A minha mãe falou-me do período e dos cuidados que devia ter também com os rapazes, sobretudo os mais velhos, os que andavam de mota e paravam à porta da escola na hora da saída.
O quadro ficou ainda confuso. Os rapazes eram os colegas de turma e os vizinhos, os miúdos com quem tinha crescido, com quem tinha brincado no pátio da escola ou andado à pedrada na fazenda. A menina sentada na beira da cama não sabia que o amor (e a vida) é um imponderável e estava certa que seria capaz de travar o tempo com as mãos, que não ia crescer, nem ficar com um corpo de mulher e certamente não se iria apaixonar, nem chorar como as raparigas mais velhas a quem os rapazes mandavam bilhetes. Não era difícil perceber que os namoros desfeitos doíam tanto como arrancar dentes sem anestesia.