Um paradoxo poderoso
A verdade ao outro começa com a verdade a nós próprios
– Falaste com a Inês, contaste-lhe a ideia que partilhei contigo?
– Sim.
– Boa, e qual foi a reação?
– Ficou entusiasmada.
Era apenas mais uma mentira, leve, quase inocente. Mas suficiente para me lembrar que não é preciso uma grande rutura para abalar a confiança.
Há quem viva com a verdade como quem respira. Não é virtude, nem orgulho, é necessidade. É bússola e chão. Não porque a vida seja perfeita ou os erros não aconteçam, mas porque cedo se percebe que sem verdade não existe confiança. E sem confiança, tudo o que resta é frágil, como areia levada pelo vento.
Quando alguém para quem a verdade é essencial se vê diante de uma mentira, mesmo daquelas que parecem inofensivas (essas que alguns chamam de “mentiras brancas”, expressão que nunca engoli), algo essencial se quebra. Não é só a mentira. É a fenda que se abre no lugar seguro da relação. E, nesse instante, a pergunta dispara: se me mentiu sobre isto, sobre que mais poderá mentir?
Mentir, mesmo “por bondade”, não é inofensivo. É manipulação em vez de responsabilidade, fuga em vez de crescimento. A verdade, por outro lado, exige coragem e gera liberdade.
A neurociência confirma: a mentira cria hábitos e reforça padrões de evasão. A neurolinguística esclarece: quebra a congruência e bloqueia a evolução. Como dizia Einstein: “Quem mente no pequeno, não merece confiança no grande.”
Numa relação, no trabalho e na vida, quem vive a verdade constrói chão firme. Quem mente, ainda que ingenuamente, planta fissuras que o tempo só agrava.
Num casal, uma mentira, mesmo pequena, não é apenas um detalhe, é uma fenda silenciosa. O cérebro humano capta a incongruência e aciona alarmes que geram desconfiança e desgaste emocional. A neurociência mostra: quanto mais se mente, mais o cérebro se habitua a enganar e a enganar-se, criando padrões difíceis de quebrar. É por isso que quem mente uma vez frequentemente encontra atalhos na mentira em vez de enfrentar a responsabilidade pessoal.
A manipulação pela mentira, distorção ou omissão de informação abre feridas que não saram.
Costumo recorrer a um modelo da neurolinguística que me é especialmente querido: a Pirâmide dos Níveis Neurológicos, criada pelo meu mentor e reitor da universidade, Robert Dilts. Utilizo-o tanto como ferramenta de desenvolvimento pessoal quanto profissional, porque me permite investigar e alinhar os meus valores. É através dele que observo a forma como me relaciono com cada um desses valores e, nesta reflexão em particular, foco-me no valor da verdade, que atravessa todos os patamares da pirâmide:
Ambiente: onde estamos e com quem estamos fica seguro quando a verdade é o guia; sem ela, o chão treme, mesmo em pequenos gestos ou omissões.
Comportamentos: cada ação, palavra e gesto encontra coerência; não há desgaste em sustentar versões diferentes ou manipular perceções.
Capacidades: clareza e integridade liberam energia mental e emocional, permitindo foco e presença em vez de manter a mentira.
Crenças e valores: escolher a verdade é escolher responsabilidade, coragem e congruência; é dizer “eu assumo a minha vida”, em vez de fugir das consequências.
Identidade: quem vive na verdade constrói um “eu” íntegro; quem mente vive fragmentado, dividido entre versões que não se encontram.
Propósito/ espiritualidade: a verdade conecta-nos com algo maior; autenticidade, respeito pelo outro e a capacidade de inspirar confiança e crescimento.
Neste caminho da vivência da verdade, deparamo-nos com um interessante paradoxo; na vida, mais tarde ou mais cedo, havemos de passar pela sensação de estar com alguém e não sabermos bem quem é. Não sabermos o que pensa, o que lhe vai no coração e na alma. (Até podemos alucinar acerca do que estará a pensar, a sentir, mas não teremos forma de validar). E podemos sentir vazio, indiferença, inquietação, tédio, distância. Então é isso que outros podem sentir com a nossa presença sempre que omitimos, distorcemos ou mentimos sobre esta verdade que sentimos.
O que ainda não compreendemos é que, quando nos encontramos assim, vivemos uma forma de infidelidade, ou seja, vivemos uma valente mentira: primeiro para connosco, por negligenciarmos as nossas necessidades e valores essenciais; e, consequentemente, também infidelidade, uma valente mentira na relação, porque esta se torna sem substância, sem alicerce, sem chão. Sem verdade.
No fim, não é o erro que nos define, mas a coragem de viver em coerência. De assumir responsabilidade. De construir, pedrinha sob pedrinha e sustentar a verdade, mesmo quando dói.