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Crónicas

O Ruído Seco das Betoneiras Que Nos Enterram Lentamente

1. [ou como a casa onde sonhámos viver deixou de poder ser construída por nós]

Na Madeira, talvez como em todas as ilhas com governo próprio e memória frágil, as coisas que mais matam são aquelas que parecem construir. Falo das betoneiras, claro. Falo das máquinas que cavam e enchem e tapam. Falo daquelas escavadoras com dentes de aço e nomes de mulher pintados nas costas, a Maria, a Clarinha, a Lurdinhas, como se fossem afectos, como se fossem filhas, como se aquele barulho, aquele cheiro de gasóleo velho, aquele pó levantado com fúria, fossem ternura.

Mas não são. São ocupação.

As pequenas empresas de construção civil não desapareceram, repito. Não foram varridas pelo tempo. Foram ocupadas. O-cu-pa-das. Com cada sílaba a cair no chão como tijolos húmidos. Estão vivas, mas não livres. Estão activas, mas presas. Estão em movimento, mas numa direcção que não controlam. Como cães de corrida treinados para perseguir um coelho que nunca vão apanhar.

As grandes empreiteiras, essas, as com escritórios com ar condicionado, as com engenheiros engomados de capacete branco e pasta de cabedal, as que aparecem nas notícias com sorrisos de quem ainda acredita na utilidade dos sorrisos, as que dizem de boca cheia que quem paga a espetada na inauguração somos nós, não constroem. Subcontratam. Chamam os pequenos. Aqueles que antes viviam do boca-a-boca, da confiança do freguês, do café na obra e do pagamento a prestações. Os pequenos vão. Porque têm contas a pagar, filhos na escola, carrinhas a prestações, dívidas no fornecedor de cimento. Vão e ficam. Amarrados a prazos que não controlam, a margens que mal respiram, a fiscalizações que descem como águias famintas com crachá no bolso e bloco de notas no coldre.

E tu, que só querias fazer uma obra pequena, uma marquise para a tua mãe ver o mar sem vento, um anexo para o teu filho fugir de ti sem sair de casa, um portão novo porque o velho range como as articulações do teu joelho esquerdo, tu, és um estorvo. Um peso morto no calendário. Um problema logístico. Um cliente incómodo com perguntas, orçamentos, IVA, dúvidas, exigências.

Quando ligas a pedir orçamento, dizem-te:

- Estamos cheios com uma obra do Governo.

- Só depois de Outubro.

- Isso não compensa.

E talvez não saibas, mas não és só tu. São muitos. Todos. O rapaz que voltou da Inglaterra para construir uma casa no terreno dos avós. A mulher que quer separar a lavandaria da cozinha. O casal que quer deixar de pagar renda. Todos. A esmagadora maioria das pessoas que não quer comprar, quer construir. Quer escolher o sítio, o traço, o tempo, o cheiro da madeira no Outono. Mas já não pode.

Porque o Estado, com os seus concursos e os seus fundos e os seus planos de investimento, comeu o sector todo. Ocupou tudo. Atrapalhou tudo. Apagou os caminhos. Criou uma bolha de escassez artificial que só beneficia os mesmos de sempre. O cimento, que devia ser para todos, passou a ser privilégio dos grandes contratos. E os pequenos, esses, transformaram-se em funcionários sem farda, operando à margem da dignidade empresarial.

O preço por metro quadrado subiu. Não por falta de materiais. Não por guerra ou inflação. Mas porque o próprio mercado foi desfigurado. Porque já não há concorrência real. Porque o Estado, que devia ser regulador, passou a ser o maior cliente e o pior patrão.

E o mais irónico, o mais cínico, o mais criminoso: é o mesmo Estado que depois vem dizer que vai “resolver a crise da habitação” com “mais construção”.

Mais? Mais betão? Mais adjudicações? Mais concursos viciados? Mais subcontratações? Mais amarras?

O que está em causa é a liberdade. A liberdade concreta, de carne e osso, de tijolo e argamassa. A liberdade de uma pessoa comum poder construir a sua casa, com os seus meios, no seu tempo, com o seu gosto. A liberdade de transformar um terreno herdado num lar. A liberdade de não depender de um promotor imobiliário, de uma renda absurda, de um banco que trata o cliente como um estorvo. Essa liberdade foi-nos tirada sem ninguém dar por isso. E tirada com dinheiro nosso. Com as nossas contribuições. Com os nossos impostos. Com a nossa paciência.

As grandes empreiteiras não são o problema. São o sintoma. O problema é o modelo. O modelo político, económico, cultural até. O modelo que diz que o sucesso de um Governo se mede em quilómetros de estrada e toneladas de betão. O modelo que idolatra a inauguração. Que faz da construção uma arma eleitoral. Que repete, com voz gasta, que “estamos a investir no futuro”, quando o que fazem é empurrar-nos para trás, para um tempo em que só os senhores tinham casa, e os outros habitavam onde lhes deixavam.

Há pequenas empresas que ainda tentam escapar. Que tentam manter clientes privados. Que tentam resistir. Mas cada vez são menos. E cada vez mais caras. Porque ser livre sai caro. Porque recusar o ciclo da subcontratação é um luxo. E porque lutar contra o sistema é difícil quando tens três filhos e um empréstimo no banco.

E no meio disto tudo, o madeirense comum, esse que tem o custo de vida mais caro do país, que vive numa ilha onde até o cimento vem de barco, olha para o seu terreno por limpar, para os desenhos que guardou na gaveta, para o orçamento que não consegue pagar, e desiste. Vende. Desaparece. Emigra. Adapta-se.

E assim se constrói o futuro.

Um futuro onde já ninguém constrói.

2. A farsa dos 1,5 milhões: o teatro da esmola disfarçada de política.

[Quando o Governo Regional troca desenvolvimento por subsídios e vende estatísticas como se fossem futuro]

Disseram-nos, outra vez com aquele tom grave e paternalista dos anúncios oficiais, que o Governo Regional vai “investir” 1,5 milhões na contratação de desempregados. Como se fosse uma revelação bíblica. Um maná caído do céu para alimentar o deserto económico onde vivemos há décadas. Mas não é investimento, não é milagre, não é nada disso. É somente mais dinheiro europeu, 85% vindo de Bruxelas, embrulhado em papel de celofane para parecer virtude local.

E olhemos para os números como eles são, sem filtros, sem a maquilhagem dos comunicados. 1,5 milhões não chegam para nada. São como uma mão-cheia de areia lançada contra um incêndio. Quando se percebe o que esse dinheiro realmente compra, a ilusão desaba: com o salário mínimo da Madeira em 915 euros, e mesmo que o apoio cubra apenas metade (457,5 euros por mês), o resultado é patético. Em quatro anos, os famosos 48 meses do programa, isso dá para pagar 68 trabalhadores. Sessenta e oito. É uma estatística para caber despreocupadamente num bolso, não uma política pública.

E se, como costuma acontecer, o Governo decidir espalhar o subsídio por períodos mais curtos, digamos um ano, seis meses, então o número sobe, sim, mas à custa da precariedade. Contrata-se durante um ano, finge-se que se reduziu o desemprego, e depois? Depois é despedir e abrir vaga para o próximo subsídio. É um círculo viciado, uma espécie de banda sonora repetida, sempre com as mesmas notas gastas, que toca há demasiados anos.

E não se fala do essencial: a quem se destina este dinheiro? Às mesmas empresas de sempre? Aos mesmos que já descobriram que contratar com dinheiro público é mais rentável do que competir no mercado? São sempre os mesmos, não são? Aqueles que se movem nas sombras da clientela política, que aparecem nas fotografias dos eventos, que conhecem os corredores, os gabinetes, os telefones certos. É um circuito fechado, uma espécie de clube privado, onde o mérito nada vale. Quem está fora, que morra. Quem está dentro, que viva de barriga cheia de subsídios.

E há algo ainda mais perverso: esta política mata a iniciativa. Por que razão uma empresa há-de investir com risco próprio, se basta esperar que o Governo lhe pague uma parte do salário? Cria-se uma economia de preguiça, onde o verdadeiro motor da produção, a necessidade de competir e inovar, é substituído pela arte de preencher formulários e sorrir para as câmaras.

Penso nos 48 meses como quem pensa numa piada cruel. Quatro anos de contrato artificial, sustentado por dinheiro alheio, que no final não deixa nada: nem empregos, nem crescimento, nem empresas mais fortes. Apenas estatísticas vazias para discursos e relatórios.

Enquanto isso, a economia madeirense continua parada no tempo. Um modelo de turismo exclusivamente turístico, de serviços públicos inchados, de subsídios e esmolas como forma de governar.

O problema do desemprego não se resolve com programas extraordinários de 1,5 milhões. Resolve-se com a coragem de mudar as regras do jogo, de libertar quem quer criar riqueza, de cortar a teia burocrática e fiscal que asfixia quem tenta levantar-se sozinho. Mas isso é difícil. Isso não dá manchetes fáceis. Isso não dá votos.

E no fim, ficamos assim: com sessenta e oito empregos a prazo vendidos como redenção, com empresas a viver de subsídios como vampiros em torno de um corpo moribundo, com um Governo que confunde caridade com política e propaganda com futuro. Quando os 48 meses acabarem, quando os jornais tiverem esquecido as fotografias e o eco das conferências de imprensa, não restará nada, nem um único tijolo de progresso, nem uma única ideia nova, apenas a poeira do mesmo deserto de sempre, o deserto a que chamam autonomia.