Da inclinação ao chamamento
Vocação. “Inclinação que se sente para alguma coisa.” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) “Disposição natural e espontânea que orienta uma pessoa no sentido de uma atividade, uma função ou profissão.” (Oxford Languages). “Inclinação e predisposição para certo género de vida, profissão, estudo ou arte.” (Infopédia).
Um outro sentido da palavra, frequentemente usado, é, conforme a Priberam, “inclinação para a vida religiosa”, ou seja, por outras palavras, aquilo que designamos por “chamamento”.
A ANQEP, Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional, indica que “Os Cursos Artísticos Especializados - áreas das Artes Visuais e dos Audiovisuais, da Dança, da Música e do Teatro - são um percurso de ensino que proporciona uma formação especializada a jovens que revelem aptidões ou talento para ingresso e progressão numa via de estudos artísticos.” (itálicos meus).
A aptidão é uma palavra vaga. Por exemplo, conforme já assumido por especialistas na matéria, praticamente não há uma pessoa, e sobretudo uma criança, que, tendo a orientação adequada, não consiga dominar as bases duma prática musical ativa. Essa pessoa tem a potencial aptidão, à espera da sua realização.
O talento, esse já implica não só a aptidão inata, como a facilidade intuitiva de entender, processar e dominar, e por isso possibilita um desenvolvimento das capacidades mais rápido e espontâneo. Portanto, colocar uma conjunção alternativa entre os dois termos resulta num equívoco que é capaz de confundir e desorientar e, às vezes, criar expectativas desadequadas.
O acesso às artes é, e deve ser, aberto a todos. No entanto, criar uma base larga e saudável de jovens de idade escolar com capacidades básicas para tocar um instrumento, apreciar música, entusiasmar-se com ela e torná-la numa companheira de alguma maneira presente ao longo da vida não é o mesmo que saber responder ao chamamento da arte que implica a verdadeira vocação. Ela não é apenas uma “inclinação” (uma palavra morna e com pouco vínculo), ou “(pre)disposição” (ser disposto é também algo passivo, à espera que aconteça alguma coisa).
Um talento é algo diferente. O talento chama, puxa, empurra e quer vir ao de cima. Não obstante, dependendo da personalidade, nem sempre é visível à primeira vista e muitas vezes é parecido a uma pedra preciosa que reside dentro da pedra bruta. Sentir a sua vibração, saber esculpir de modo a que a jóia se revele e saber fazê-la crescer, isso é uma tarefa delicadíssima e sensível. Mas, uma vez libertada, essa jóia desenvolve-se e progride duma maneira exponencial e, às vezes, propriamente assustadora.
Parafraseando provérbios que, desde os inícios da nossa era, relacionam o poder e a responsabilidade (e que, portanto, têm a sua origem muito antes do “Homem-Aranha”), pode-se afirmar que, quanto maior o talento, tanto maior a responsabilidade. Só que, nos anos formativos, essa responsabilidade reside sobretudo nas famílias e encarregados de educação, cujo papel é muito maior do que simplesmente controlar as notas e fiscalizar as faltas dos seus filhos. Para os jovens poderem concretizar a sua verdadeira vocação, dedicar-se a ela e manter a convicção sobre o seu percurso (“Quanto maior o artista, tanto maior a dúvida,” indica Robert Hughes), eles precisam de sentir que os que os rodeiam acreditam neles e que fazem tudo por tudo para lhes proporcionarem as melhores condições possíveis a fim de se desenvolverem duma maneira livre mas estruturada, e desimpedida mas observada. Só nessa base é que a ação educativa tem as verdadeiras hipóteses de contribuir para o crescimento do talento e da expressão artística em toda a sua plenitude. A “inclinação” nem sempre implica a “vocação”, e a “disposição” nem sempre se traduz em “ação”. Para um “talento” poder responder ao seu “chamamento”, devem-se conjugar os pressupostos e as condições que apenas a família e a escola têm a capacidade de proporcionar.