Da frustração ao fanatismo: lições que esquecemos depressa demais

Há cinquenta anos, Portugal conquistou a Liberdade dando ao mundo um exemplo de como é possível lutar pacificamente através de cravos e canções. Foi o momento de saída de uma ditadura longa e opressiva. Hoje, olho com preocupação a ascensão dos extremos, o retorno dos discursos autoritários, agora revestidos de patriotismo e promessas fáceis.

Compreendo a revolta e a frustração. Uma longa deriva de má governação permitiu a instalação de corrupção sistemática, de destruição de um Serviço Nacional de Saúde que era considerado um dos melhores do mundo, serviço esse que, orgulhosamente o meu pai, Eduardo Sá Ferreira, administrador hospitalar, ajudou a fundar. Professores e forças de segurança desrespeitados, sem meios nem autoridade. A frustração é real e legítima.

Mas será que a resposta está nos extremos? Será que se combate o desgoverno e a mediocridade com radicalismo? A História ensina-nos, de forma brutal, que não. E, no entanto, esquecemo-la com uma facilidade verdadeiramente assustadora.

Na Alemanha dos anos 30, muitos eleitores acreditaram que Hitler era a resposta ao caos da República de Weimar. Sentiam-se traídos, humilhados, impotentes. Queriam ordem, orgulho nacional. Mas principalmente procuravam soluções, que acreditaram encontrar num homem que lhes prometeu tudo isso, enquanto, em surdina, minava a democracia, perseguia minorias e preparava o mundo para a guerra e para o horror do Holocausto.

A manipulação nunca começa com tanques nas ruas. Começa com palavras. Com simplificações perigosas, com promessas absolutas, com a transformação do “outro” num inimigo. A manipulação começa quando deixamos de pensar e nos limitamos a seguir.

Somos seres pensantes. Podemos ler, refletir, questionar.

Ainda é permitido.

E é um dever.

A democracia, com todas as suas falhas, dá-nos essa liberdade. E essa liberdade, por muito imperfeita que seja, é preciosa. Sobretudo para quem, como eu, tem filhas e não quer que elas cresçam num país onde ser mulher, onde ser diferente, onde pensar livremente volte a ser motivo de perseguição.

Não podemos esquecer o que custou às mulheres chegarem até aqui. Foram séculos de silêncio, de exclusão, de invisibilidade. Não podiam votar livremente, não podiam viajar sem autorização do marido, não podiam sequer sonhar com uma carreira. Foram vozes como as de Natália Correia, Maria de Lurdes Pintasilgo ou Sophia de Mello Breyner que ajudaram a abrir caminho.

E detalhe… não foi assim há tanto tempo. Foram apenas cinco décadas.

É essa liberdade que agora, com leviandade e ligeireza, muitos estão dispostos a trocar por líderes que prometem resolver tudo de forma “simples”. O fanatismo nunca traz soluções: traz medo, censura e violência.

Já vimos este filme. E sabemos como acaba.

E concluo com aquilo que, para mim, é inegociável.

Sei que este artigo pode, naturalmente, gerar reações fortes. Já espero os comentários agressivos, as frases feitas, as tentativas de intimidação. A cassete extremista, tal como a comunista de outros tempos, repete-se. Mas eu continuo a acreditar que pensar, duvidar e defender a liberdade vale a pena. Mesmo que doa. Mesmo que incomode.

“Não há machado que corte a raiz ao pensamento.” - Ary dos Santos

Helena Silva