DNOTICIAS.PT
Artigos

O nome da Rosa

Estamos na Itália, século XIV. A morte trágica de sete monges beneditinos deixa o clero intrigado e assustado. Um frei inglês, Guilherme de Baskerville, acompanhado por um ajudante, o alemão Adso de Melk, são enviados pela hierarquia com a missão de investigar e reportar o que aconteceu. Correm rumores da ocorrência de heresias na abadia medieval quando, curiosamente, aí estavam reunidos um grupo de teólogos, quer do controverso Papa João XXII, quer do Imperador vigente, Luís IV. O objeto da discussão era a pregação dos Franciscanos, que sugerem à igreja a pobreza evangélica, apreciada pelo imperador, mas não pelo papado.

Na Idade Média, as sociedades eram marcadas pela visão afunilada da religião, mais até das suas fações prevalentes em cada local. A interpretação dos textos sagrados tinha nuances hoje incompreendidas, e até o simples riso poderia ser dado como proibido, uma blasfémia da alma, uma obra do Demo.

Baskerville investiga as causas dos crimes aos monges, e descobre estarem ligadas à tentativa de esconder uma biblioteca onde existem obras apócrifas mantidas em segredo, obras históricas cujo conteúdo não seriam aceites pela hierarquia, até rotuladas de hereges. Sem consenso sobre o que fazer com elas, a igreja da Idade Média esconde-as, como é o ensaio sobre o riso atribuído a Aristóteles.

Muitos anos mais tarde, Adso de Melk relata os acontecimentos num manuscrito que chegou aos nossos dias. O mesmo inspirou o filósofo Umberto Eco a escrever o livro “d’O Nome da Rosa”, e depois dar origem ao famoso filme do mesmo nome, que tive o prazer de rever recentemente.

Eco é um profundo conhecedor de semiótica, a arte de interpretar sinais e a linguagem, verbal e não verbal, de entender como o ser humano consegue interpretar as coisas, principalmente o ambiente que o envolve. E Eco interpretou com maestria o cerne do crime, o “calar” aquilo que incomoda, o “calar” o que arbitrariamente se decreta profano, o “calar” o que não é para ser conhecido pelo povo, o “calar” para poder redoutrinar.

Não encontro melhor analogia histórica do que “d’O Nome da Rosa”, para elucidar o bem recente ataque do governo Trump às universidades americanas.

O caso mais polémico e mediático é o da prestigiada Universidade de Harvard, universidade privada situada na cidade de Cambridge, estado de Massachusetts, a quem Trump ameaça cortar fundos federais, passar a cobrar impostos e restringir ou condicionar muitas das atividades de investigação.

Numa carta enviada à universidade, a administração da Casa Branca exige que Harvard denuncie ao governo federal os alunos que sejam “hostis” aos valores americanos, não explicitando quais são esses valores. Que garanta que os departamentos acadêmicos tenham uma “diversidade de pontos de vista” com critérios estabelecidos pelo governo, não favoreçam ninguém de nenhuma forma, sejam mulheres, pessoas de certa raça minoritária, deficientes, muito menos estrangeiros, entre outras restrições. Que contrate novos académicos que substituam os atuais, considerados progressistas. Que uma entidade externa, aprovada pelo governo, audite os programas de ensino. Que atue sobre quem não siga o novo pensamento estratégico do governo federal.

Na essência, não se trata de um combate ao antissemitismo, ou aos protestos contra a guerra na Palestina, mas sim uma tentativa de colocar instituições que fomentam o pensamento independente, e a investigação, sob as rédeas doutrinárias do governo.

O presidente de Harvard, Alan Garber, rejeitou as exigências de Trump, e disse que “a universidade não abrirá mão de sua independência, nem dos seus direitos constitucionais que protegem a liberdade de expressão”.

Para o movimento MAGA e a administração Trump, as universidades são o coração do “establishment” progressista americano. Como o vice-presidente americano J. D. Vance afirmou, “as universidades não buscam o conhecimento e a verdade, buscam a farsa e a mentira e é a hora de sermos honestos sobre esse fato”.

Respeito democraticamente a sua opinião, mas estou também democraticamente em desacordo com a mesma. Creio que o pensamento científico não cabe dentro das paredes curtas da doutrinação ideológica. O passado está repleto de maus exemplos.

Aquilo que a ciência nos mostra é que Deus, ou outra entidade do universo, criou algo tão cristalino quanto imperscrutável, que não cabe aos homens rotular ou esconder. Seja o Imperador, seja o Papa.