A viagem
O entusiasmo era maior do que a saudade ou o medo de deixar tudo
A minha roupa coube toda na mala de cantos gastos que, antes de seguir viagem comigo para Lisboa, tinha andado nas mãos da minha tia Conceição num passeio da paróquia a Fátima e Norte de Portugal. A minha prima Ana também a levou numas férias a Canárias e veio de lá carregada com tudo o que não havia nas lojas da cidade. As coisas, todas as coisas, tinham história e passavam de mãos consoante a necessidade e, por isso, ali estava no chão do quarto de engomar, a receber os sapatos, o fato novo, o casaco de finalista que fazia a vez de blazer e combinava com a saia de cornucópias.
A minha mãe coseu um bolso escondido nas saias e nas calças para esconder o dinheiro. Lisboa era um antro de ladrões, todas as pessoas conhecidas repetiam a história e a dona Celina era uma mulher prevenida. E antes que me levassem o dinheiro, agarrou-se à máquina de costura Singer, que a mala podia ser uma imitação de couro, a acusar o uso e as viagens, mas no Laranjal havia quem pensasse em quase tudo. A outra preocupação foi o frio que, em todas as histórias e versões, que não se tapava com as roupas do inverno madeirense. “Assim a pequena ainda apanha uma doença”, os lojistas faziam a temperatura descer para vender camisolas interiores, pijamas, meias de lã e até um edredão.
As meias de lã que nunca usei, as toalhas, os pijamas e tudo o que se comprou nessa semana antes de me separar de todas as pessoas conhecidas e dos lugares onde crescera coube na velha mala com os cantos esfolados. O edredão foi embrulhado e enfiado num saco à parte, enquanto o meu quarto parecia despido. Em parte eu já não estava bem ali, na minha casa, mas algures a caminho do desconhecido, rumo a uma cidade da qual tinha uma vaga ideia das fotografias e das imagens da televisão. O que era o mesmo que nada e faltava pouco para perceber isso mesmo.
Apesar das gavetas vazias e dos cabides desamparados dentro do armário, o entusiasmo era maior do que a saudade ou o medo de deixar tudo o que conhecia. O meu quarto e o terraço, o quintal e a sombra das laranjeiras, os cães a ladrar à lua. Ou as conversas com o meu irmão ao almoço, os lanches com a minha tia Teresa ou as tardes de domingo com a minha prima Ana ou a certeza de correr para casa onde, fosse dia de chuva ou sol, havia sempre o calor do abraço da minha mãe e do meu pai. Nesses dias, em que foi preciso marcar passagem, candidatar-se à bolsa de estudo e comprar pijamas e meias quentes, ninguém lamentou o que estava a chegar.
Eu dormi um sono sobressaltado na noite antes da viagem e tive pesadelos com o avião, que descolava antes de chegar ou a mala desaparecia sem explicação. Quando acordei a minha mãe estava a pé, a vestir-se com a roupa de sair e o meu pai carregava a mala escada abaixo para não se perder tempo quando o meu tio Humberto parasse na curva. E não tive vagar para lançar um último olhar ao quarto, ao quintal. Eu tinha pressa e a minha vida estava a começar, só não me tinham dito o que isso implica, nem que a minha primeira memória de solidão seja de mim, aos 18 anos, a chorar de saudades nos jardins da Gulbenkian, num dia de sol, céu azul e frio. Os lojistas não tinham mentido.
Tudo isso seria depois. Naquela manhã de sábado fomos uma família como todas as outras, antes e depois. Eu segui viagem, com o edredão num saco e os 50 contos bem dobrados no bolso escondido das calças de ganga; a minha mãe, o meu pai e o tio Humberto ficaram na varanda a acenar. E disso eu lembro-me bem, a vida como uma adulta começou nesse dia.