Engodo
O peixe-espada-preto não é apenas um ingrediente; é um embaixador da identidade madeirense
Nos mistérios insondáveis do oceano, onde a luz se dissolve na escuridão e o silêncio pesa e o tempo parece suspenso, habita uma criatura que define a identidade de um povo: o de Câmara de Lobos. Desculpar-me-ão que enalteça o meu concelho. Tentarei não ser maçudo ou enfadonho. Até por que falar-vos-ei igualmente de uma herança, de um património e de uma espécie marinha que habita as profundezas do Atlântico; Falar-vos-ei também de um testemunho vivo, de uma história de gente, da resiliência que molda a alma dos nossos e dos ainda que ousam desafiar o mar. Apesar de andar em terra firme, conheço-os um por um, porque desde cedo andei ao lado de quem atira o anzol e que não aparece apenas quando a época é propícia ao engodo. Adiante.
Câmara de Lobos tem, desde tempos imemoriais, um pacto silencioso com o mar. Está cravado nas rochas da nossa baía, onde os seus pescadores, herdeiros de um conhecimento forjado na incerteza das ondas, aprenderam a ler os sinais invisíveis da natureza, a sentir o pulso das marés e a entender que o mar dá, mas cientes que também tira. Sabem distinguir entre o que é certo e o que é errado mesmo que a cada isca lançada alimente uma esperança falaciosa.
É neste mar que carrega séculos de histórias, de sonhos e de lutas contra um destino quase sempre incerto, que bravos homens aqueles que partem ao encontro da espada, descendo as suas linhas até profundidades abissais, entre os 800 e os 1.600 metros, onde reina o frio, a pressão e a escuridão absoluta. Navegam estoicamente entre a bruma, desafiando o calor e dificilmente se deixam seduzir.
Certamente percebeu que não é uma profissão para os que temem o desconhecido. Que hesitam ao balançar das pequenas embarcações. Só gente de fibra que não esmorece ao primeiro sinal de cansaço, resiste porque estão habituados a que cada saída é um recomeço. Os antigos contam histórias de noites onde apenas o instinto guiava os pescadores, de jornadas em que o regresso não era garantido e de um tempo em que os barcos não tinham motores, mas movidos por combustível chamado coragem. Hoje, embora os métodos se tenham modernizado, a essência mantém-se: o mar exige respeito, e só os que o compreendem sobrevivem nele.
A pesca do peixe-espada-preto não é apenas um ofício; é a espinha dorsal de uma economia que sustenta famílias inteiras e alimenta um legado secular. Mais de 50% do pescado desembarcado na Madeira é desta espécie. Só no último ano, ultrapassou os 11 milhões de euros em vendas, e para este ano prevê-se um novo recorde. Mas os números, frios e precisos, nunca poderão contar a verdadeira história de um homem que lança o seu aparelho ao amanhecer e regressa ao cair da noite com as mãos marcadas pelo sal e pelo esforço onde a cada braçada escorre um pingo de suor.
Além da economia, há a cultura. O peixe-espada-preto não é apenas um ingrediente; é um embaixador da identidade madeirense. Nos restaurantes da ilha, servem-se pratos que levam na sua essência o sabor do oceano e a tradição de quem o conhece como ninguém. Os turistas saboreiam-no, talvez sem saberem que, para aquele peixe chegar à mesa, foi necessário que alguém desafiasse o desconhecido, navegasse por águas traiçoeiras e enfrentasse alto-mar.
No mar, como na vida, não há garantias. Há apenas a coragem de lançar-se ao desconhecido, confiando na própria força e na promessa de que, ao fim da jornada, haverá um novo dia. É assim que Câmara de Lobos continua—lançando-se ao oceano, desafiando as marés, honrando a história que não se escreve apenas com números, mas com a coragem de um povo que fez do mar a sua casa e do peixe-espada-preto o seu maior símbolo mesmo que nos próximos dias surjam promessas de um mar de rosas. Nem rosas nem aqueles que se dizem juntos pelo povo. Já Chega também de engodo.