Será que a Rússia de Putin registou o maior exportador de ferro na Zona Franca da Madeira?
O jornal Público noticiou, na quarta-feira, que em todos os 46 processos já concluídos em tribunais europeus sobre a (i)legalidade dos auxílios de Estado à Zona Franca da Madeira as decisões foram desfavoráveis às empresas, à Região Autónoma e ao Estado Português, tendo sido sempre favoráveis à posição da Comissão Europeia.
Num comentário no Facebook sobre essa notícia, o engenheiro Arlindo Oliveira afirmou ser natural que as instituições europeias se sentissem enganadas com o regime de auxílios atribuídos à Zona Franca, pois o mesmo não se traduziu na criação de emprego que seria expectável. O antigo deputado e autarca socialista cita o caso de uma empresa sediada na Zona Franca que dava emprego só a “uma pessoa” e que, em “certo ano recente”, “foi o maior exportador de ferro fabricado na Rússia de Putin, sem que na Zona Franca houvesse qualquer siderurgia”. Será mesmo assim?
O Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM), vulgo Zona Franca da Madeira, foi criado há 45 anos e já teve milhares de empresas registadas nos seus vários sectores. No final de 2023, havia 2.643 empresas registadas. Ao longo deste tempo, foram publicadas notícias sobre situações anómalas envolvendo algumas dessas sociedades, mas nenhuma corresponde integralmente ao caso apontado por Arlindo Oliveira.
Mas há uma informação que tem muitos pontos em comum com aquele relato. Foi tornada pública em Abril de 2016 pelo economista João Pedro Martins, autor do livro ‘Suite 605’, que mostrou como grande companhias internacionais utilizavam a Zona Franca da Madeira para fugir aos impostos, sem terem de criar estruturas locais. Precisavam apenas de ter uma caixa de correio e um número mínimo de funcionários, sendo que estes faziam trabalho para outras empresas.
Ora um dos casos que apontou para exemplificar essa fiscalidade mínima foi o da empresa ‘Wainfleet’, criada na Zona Franca em 1999 e detida pelo grupo russo ‘UC Rusal’, maior produtor mundial de alumínio, controlado por Oleg Deripaska, que chegou a ser o sexto homem mais rico do Mundo. A ‘Wainfleet’ “esteve adormecida até 2005, ano em que facturou três mil milhões de euros”. Segundo dados da Associação Empresarial de Portugal, nesse ano, foi a empresa que mais facturou em Portugal. Mais até do que a fábrica de carros Autoeuropa. O volume de facturação da ‘Wainfleet’ esteve nesse mesmo nível nos dois anos seguintes e em 2008 facturou zero.
A ‘Wainfleet’ tinha a sua sede na sala 605 do edifício Marina Fórum, que foi a morada de outras mil empresas sediadas na Zona Franca. Aquela sociedade declarou ter apenas quatro trabalhadores. Até ao final de 2002, a empresa tinha como gerentes dois representantes de uma empresa de "management", mas a partir daquela data a gerência passou a ser assumida por um responsável de nome russo: Dmitry Grishkevich. Em meados do ano 2010, o gerente russo saiu de cena e deu lugar a um representante na ilha de Chipre, o qual se manteria em funções até Julho de 2013, altura em que a sociedade foi dissolvida administrativamente por falta de actividade. Quando foi encerrada, não tinha nenhum trabalhador inscrito na Segurança Social.
Em Setembro de 2010, por duas ocasiões, a empresa ‘Wainfleet’ entrou no debate político. Primeiro, numa conferência de imprensa realizada em 27 de Setembro de 2010, o deputado socialista Carlos Pereira dizia que o volume de negócios da ‘Wainfleet’ “corresponde a 75% de toda a riqueza criada na Região Autónoma da Madeira” e acrescentava que este “não é um caso isolado”. “Temos dezenas de empresas registadas no Centro Internacional de Negócios da Madeira que facturam dezenas de milhões de euros e têm meia dúzia de funcionários”, acrescentou.
Poucos dias depois, num debate quinzenal com o governo na Assembleia da República, o coordenador do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, questionava o então chefe do executivo: “O senhor primeiro-ministro saberá qual é a empresa que mais exporta em Portugal? Não é a Galp. Não é a Autoeuropa. É uma empresa que tem 4 trabalhadores e regista 3 mil milhões de euros de receita, o equivalente a três vezes o orçamento do Ministério da Agricultura. Esta empresa está registada como consultoria e auditoria financeira e vende mercadorias. Não paga um cêntimo de imposto. Como é que isto é possível?”.
Em resumo, a história descrita por Arlindo Oliveira tem um fundo de verdade, mas peca em aspectos relevantes. Houve, de facto, um gigante da indústria metalúrgica russa que utilizou uma empresa da Zona Franca da Madeira para reduzir a sua factura fiscal, criando poucos postos de trabalho locais. Mas, ao contrário do que afirmou o antigo político madeirense, o tal grupo é um fabricante de alumínio e o caso aconteceu há vinte anos. Não foi em “certo ano recente”, nem “foi o maior exportador de ferro”.