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Crónicas

2026: Ou Mudamos a Sério, ou Continuamos a Fingir

Hoje, 29 de dezembro de 2025, faço o que todos fazem, só que com menos ilusões e mais vontade de raspar a ferrugem das coisas: imagino a noite de 31 como um laboratório, não de fogos ou selfies, mas de carácter. Porque o Ano Novo insiste em vender-nos a ideia absurda de que o tempo muda com um clique, e nós fingimos que sim, como se mudar no calendário bastasse para mudarmos também.

Na noite de São Silvestre, a Madeira repete o seu ritual: o Funchal é capital do mundo por quinze minutos, o céu ilumina-se e o mar, com a paciência de quem já viu tudo, ensina que o que não se sustenta, cai. Eu, à janela, copo na mão, observo a cidade a brilhar, a prometer sorte, paz, saúde. Penso, com a calma crua da noite, que pouco devo ao ano passado, mas devo uma coisa ao que aí vem: exigência. É que hoje, exigir já é meio programa político. O meu primeiro desejo para 2026 é simples: quero instituições que funcionem mesmo sem serem vigiadas, regras que não sejam só para mostrar, procedimentos que não sejam teatro. Quero uma administração pública que respeite o tempo das pessoas, a verdadeira riqueza democrática. Quando um serviço público nos põe numa fila a nos fazer perder tempo, está a tirar-nos liberdade. Em 2026, quero menos “é assim” e mais “isto tem de ser assim”. Depois, inevitavelmente, vou bater na tecla que mais irrita os amantes da coreografia: vou querer que se pare de confundir política com espectáculo. Menos fotografias de inaugurações, mais obras acabadas, mais soluções apresentadas. Menos discursos sobre “visão”, mais números claros, contratos visíveis, concursos a sério, e uma vergonha muito saudável de fazer batota. Vou querer que a transparência deixe de ser um folheto e passe a ser uma rotina. A transparência não é um favor do poder, é um dever. E quando o poder se irrita com perguntas, é porque está demasiado habituado ao silêncio. E silêncio, em política, é sempre um subsídio aos piores.

E aqui, sim, eu vou querer autonomia com dentes. Autonomia que não seja berrar “somos nós”, mas seja assumir responsabilidade com a mesma coragem com que se exige respeito. Uma autonomia de ter a maturidade de dizer “falhámos” sem inventar inimigos externos para disfarçar incompetências internas. Autonomia progressiva. Um pacto duro e limpo que nos dará mais capacidade local, sim, mas com mais escrutínio, mais concorrência, mais dados abertos, mais avaliação independente, e menos esta cultura de clube, de “os nossos”, de portas laterais, de “depois vê-se”. Porque autonomia sem crítica vira provincianismo bem vestido. E provincianismo, por mais que se pinte de moderno, acaba sempre a cheirar ao mesmo: medo do diferente e alergia à prestação de contas.

Na noite de fim de ano, vou acabar por descer à rua. Ficar à janela é confortável, mas a indignação confortável vira entretenimento. Vou sair para o frio húmido, que se cola à pele como uma lembrança, cruzar-me com grupos a rir, gente a filmar o céu, casais a discutir baixinho, jovens a celebrar com copos de plástico a tratarem a vida como infinita. Mas vou reparar, como sempre, que há muitos ali preocupados: com a renda, o salário, o trabalho incerto, as consultas que demoram, ou o filho que talvez tenha de emigrar. A festa é bonita, mas a conta nunca desaparece.

E é aí que a habitação me vai cair em cima como um peso moral. Em 2026 vou querer que a habitação deixe de ser um castigo. Vou querer que deixe de ser esta roleta onde uns têm património e outros têm esperança, e a esperança paga sempre mais caro. Vou querer mais oferta, sim, mas feita com inteligência e com honestidade: reabilitar onde faz sentido, construir onde faz sentido, simplificar processos onde só existe complicação por vício, e fiscalizar a sério quem aldraba, em vez de castigar à partida quem quer fazer bem. Vou querer prazos de licenciamento que sejam prazos e não lendas. Vou querer regras claras, previsíveis, e uma administração que não obrigue as pessoas a tornarem-se especialistas em carimbos, como se isso fosse um rito de passagem para a cidadania. Não é. É só desperdício.

Vou querer também que se diga, sem floreados, uma verdade que dói: quando o Estado atrasa e emperra, está a escolher que os preços subam. Não é “o mercado”, não é “a conjuntura”, não é “a vida”. É uma escolha administrativa com consequências sociais. E escolhas têm responsáveis. Em 2026 vou querer que as responsabilidades sejam nomeáveis e cobradas. Não por vingança, mas por higiene. Um sistema sem responsabilidade é um sistema que se repete eternamente, mesmo quando falha.

Mais adiante, vou cruzar-me com uma senhora idosa a caminhar devagar, agarrada ao braço de alguém. E, sem saber nada da vida dela, vou pensar na saúde. Em 2026 vou querer um sistema de saúde que trate as pessoas como pessoas e não como senhas. Vou querer cuidados primários fortes, prevenção a sério, acesso rápido quando é preciso, e gestão que use a capacidade instalada, em vez de viver do desporto preferido de quem manda mal: inventar desculpas. Vou querer que o tempo clínico seja protegido como ouro. Porque tempo clínico é vida. E vou querer menos papelada inútil, menos labirintos, menos “falta um documento”, menos pingue-pongue entre serviços que não se falam. A tecnologia, quando é bem usada, serve para simplificar. Quando é mal usada, cria burocracia digital, que é a mesma miséria com ecrã e senha.

E depois vem a educação, que para mim é sempre o verdadeiro Ano Novo. É aí que se decide se 2026 é futuro ou repetição. Vou querer escolas que ensinem liberdade, que é ensinar pensamento crítico, debate, ciência, e aquela capacidade rara de mudar de ideias quando os factos mudam. Vou querer literacia financeira e digital como competências básicas, porque o mundo de 2026 vai continuar a castigar quem não sabe ler contratos, quem não percebe juros, quem não distingue informação de manipulação. Vou querer que os miúdos aprendam a reconhecer charlatanice, seja ela política, financeira ou emocional. E vou querer professores respeitados e apoiados, não tratados como alvos de guerra cultural ou como funcionários de um sistema que lhes pede milagres e lhes dá burocracia.

E sim, vou querer uma sociedade adulta. Não uma sociedade perfeita, mas uma que aprende com os erros e os corrige. Quero menos histeria, mais debate, menos tribalismo e mais argumento. Uma sociedade livre sabe discordar sem fazer do outro um inimigo, e sabe gerir conflitos sem histeria, 0 que num tempo de redes sociais, já é quase resistência.

Em 2026 vou querer uma economia que não seja um clube fechado. Vou querer concorrência real. Vou querer menos cartel, menos compadrio, menos “sempre foi assim”. Vou querer uma administração pública que trate quem cria valor como parceiro e não como suspeito. Vou querer justiça rápida, porque justiça lenta é injustiça com agenda. Vou querer impostos compreensíveis, taxas justificadas, e um Estado que pare de fingir que a complexidade é sinal de sofisticação. Complexidade, muitas vezes, é só uma forma de esconder privilégios.

E também vou querer diversificação económica, mas diversificação a sério, não aquela conversa vaga de conferência. Turismo é importante, claro. Mas turismo não pode ser a única religião. Uma economia de altar único vive sempre com medo da próxima tempestade. Vou querer serviços exportáveis, tecnologia, economia do mar, ciência aplicada, produção local com valor acrescentado, energia e eficiência. Vou querer que a Madeira use a geografia como vantagem e não como desculpa. O Atlântico não é barreira. É estrada. Só que estrada exige coragem e método, não exige foguetes.

E porque eu não sou feito só de indignação, vou querer cultura. Vou querer cultura como músculo, não como adorno para turista. Vou querer bibliotecas vivas, arquivos acessíveis, criação sem coleira, crítica sem medo. Vou querer que a Madeira se olhe ao espelho sem maquilhagem, com tudo, o belo e o ridículo, o heróico e o mesquinho. Vou querer uma narrativa que não seja só postal, porque povo que vive de postal é povo que aceita ser figurante. E eu, em 2026, vou querer menos figurantes e mais autores.

No fim da noite, quando o céu começar a cansar-se e o mar voltar a ser só mar, eu vou fazer o meu desejo final, o mais teimoso de todos, aquele que dá trabalho e por isso vale a pena: vou querer que a cidadania deixe de ser um comentário de café e passe a ser prática diária. Perguntar, fiscalizar, participar, criar, exigir. Não como passatempo, mas como dever. Porque a liberdade não vai ser uma medalha que nos penduram ao peito. A liberdade vai ser manutenção permanente, como uma casa à beira-mar: se não se cuidar, o sal come tudo. E o sal, ao contrário de muita gente, não dorme.

Em 2026 não vou pedir milagres. Vou pedir coragem, competência e decência. E vou pedir uma coisa ainda mais rara: que deixemos de fingir surpresa quando a falta dessas coisas nos cai em cima.