O Estado como Caddie de Luxo
Privatize-se o ganho, socialize-se o risco, e chame-se a isso “estratégia”
Há qualquer coisa de quase comovente, no pior sentido, na maneira como Miguel de Sousa escreve sobre o golfe como quem escreve sobre uma aparição: entra-se em terreno baldio, sai-se em paraíso, e pelo meio não há custos, não há trade-offs, não há água, não há conflito, não há Estado. Ou melhor, há Estado, mas só como anjo da guarda que paga e não faz perguntas. O texto começa com aquele sermão da “seriedade” e da “honestidade”, como se a seriedade fosse uma tinta especial que, depois de aplicada, tornasse qualquer frase automaticamente verdadeira. A seguir vem o grande refrão, dito com a solenidade de quem nunca teve de escolher entre dois males com dinheiro contado: “o investimento no golfe não retira um único euro à habitação, saúde ou outra carência social. Nem água”. Isto não é um argumento, é uma declaração de fé. E a fé, por muito que aqueça o coração, não fecha contas nem enche reservatórios.
Comecemos pelo básico. Um orçamento é finito. Sempre. Mesmo quando vem “de fora”, mesmo quando “vem de fundos”, mesmo quando vem com carimbos e siglas e promessas. Canalizar recursos públicos para um projecto implica, inevitavelmente, deixar outras prioridades para trás, independentemente de como se justifique a decisão. Continuamos a ter uma realidade simples: cada euro, cada hora de trabalho técnico, cada estudo prévio, cada levantamento topográfico, cada relatório geotécnico e hidrogeológico, cada avaliação ambiental e respectiva monitorização, cada parecer, cada consulta pública (quando existe), cada projecto de execução, cada revisão de projecto, cada concurso público, cada ajuste, cada aditamento, cada impugnação, cada indemnização, cada expropriação e respectivo contencioso, cada metro de estrada de acesso, cada rotunda “estratégica”, cada muro de contenção, cada drenagem, cada terraplanagem, cada estabilização de taludes, cada desvio de linhas de água, cada quilómetro de conduta, cada estação elevatória, cada depósito, cada ligação eléctrica (e reforço de rede), cada ligação de telecomunicações, cada ligação de saneamento, cada iluminação pública, cada sinalética, cada vedação, cada parque de estacionamento, cada edifício de apoio (club house), cada licença e taxa, cada fiscalização, cada seguro, cada auditoria, cada plano de emergência, cada compensação “ambiental” para inglês ver, tudo isso tem custo e tem oportunidade alternativa. Quando alguém diz, com a cara séria de quem faz um favor ao povo, que não se tira um euro à habitação ou à saúde, eu só penso: então de onde é que ele sai? Do Espírito Santo? Da “santinha da ladeira”? Do “saldo” da boa vontade? Isto é infantil. E quando a política entra no infantil, quem paga é o adulto de serviço, que neste caso é o contribuinte.
Depois há a água, essa água que o artigo declara inexistente como problema, como se um campo de golfe fosse um tapete de sala que se sacode ao domingo. Um campo de golfe existe para ter relva impecável. Relva impecável exige rega. E rega, em ilhas, é sempre uma conversa séria, mesmo quando chove, mesmo quando se diz que “há excedentes”, mesmo quando se promete dessalinização e reutilização de águas residuais, como se isso fosse um feitiço sem custos. Não posso verificar, agora porque desconhecido por todos, os números exactos do projecto concreto que o autor parece já ter decidido que é inevitável. Não tenho acesso a medições locais, a planos hídricos detalhados, a contratos, a estimativas técnicas oficiais completas. Mas sei uma coisa que qualquer pessoa com dois dedos de testa percebe: água não é só o volume. É a origem, é a época do ano, é a energia necessária para a captar, tratar, transportar e pressurizar, é a rede que existe ou não existe, é o impacto nos aquíferos, é a competição com agricultura e consumo humano, é o risco num cenário de alterações climáticas onde os padrões de precipitação já não se comportam como o folclore do “antigamente chovia mais”. E quando se responde a tudo isto com “nem água”, o que se está a dizer é: não me apetece falar do assunto.
A seguir vem a narrativa do “milagre” do Porto Santo. “O golfe foi o milagre”, e pronto, arruma-se o dossiê, evita-se a complexidade, e prepara-se o próximo milagre, como quem copia um prato de ementa para outro restaurante sem olhar para os ingredientes nem para o fogão. Só que territórios não são fotocópias. Porto Santo não é Ponta do Pargo. A estrutura económica, a escala, a logística, o tipo de turismo, a geografia, a pressão imobiliária, tudo isso muda. E mesmo que admitíssemos, por absurdo, que o golfe foi “o” factor decisivo, ainda assim seria preciso provar que o mesmo mecanismo se repete, com os mesmos resultados, com os mesmos custos, com os mesmos riscos, e com benefícios que não ficam concentrados em meia dúzia. E provar não é declamar. Provar é comparar cenários, estimar impactos, explicar modelos de exploração, demonstrar procura, demonstrar sustentabilidade financeira, demonstrar sustentabilidade ambiental. E essa parte, curiosamente, não aparece. Aparece a poesia do “farol”. O farol, claro, que funciona como metáfora para disfarçar o betão.
E aqui entra a parte mais irritante do texto, que não é o entusiasmo, porque o entusiasmo é humano e, às vezes, até é útil. O que irrita é o moralismo. Miguel de Sousa faz aquele truque típico de quem não quer discutir: transforma a discordância em defeito moral. Quem pergunta é demagogo. Quem duvida é “força do mal”. Quem solicita números é obstáculo ao progresso. Isto não é debate. Isto é catequese com vocabulário de opinião. É a tentativa de substituir democracia por “linha correcta”, como se a autonomia fosse uma missa e não um mecanismo de governo com dever de prestação de contas. Num Estado de direito, e mais ainda numa região que se orgulha de autónoma, a discussão séria não é um estorvo, é o oxigénio. O problema é que o oxigénio dá trabalho e obriga a esclarecer coisas que não ficam bonitas em crónica.
Falemos então do que não fica bonito: expropriações, infra-estruturas, acessos, redes, manutenção, riscos de derrapagem, custos escondidos. A expropriação é apresentada como se fosse uma espécie de “compensação justa” que toda a gente recebe com um sorriso e uma lágrima de gratidão, e quem não gosta é porque odeia o futuro. Só que expropriação é poder coercivo do Estado. É o Estado a dizer: isto deixa de ser teu, porque decidimos que há um interesse público superior. Portanto, a primeira pergunta tem de ser sempre: qual é exactamente o interesse público e por que razão não pode ser alcançado por meios menos intrusivos? A segunda pergunta: quem beneficia? A terceira: quem assume o risco? Porque o risco, aqui, é a palavra que toda a gente evita como se desse azar. Se o projecto correr mal, se a procura falhar, se os custos de operação subirem, se a água encarecer, se a energia encarecer, se a manutenção for maior do que o previsto, quem paga? O privado? Ou o Estado, outra vez, com um “apoio excepcional” e um discurso triste sobre “garantir a sustentabilidade do investimento”?
Que fique bem claro: eu não tenho nada contra o golfe, nem contra a construção de campos, nem contra a ideia de atrair turismo com qualidade, desde que o processo seja transparente, tecnicamente explicado e politicamente honesto. Até considero perfeitamente legítimo haver investimento privado em golfe, como há em hotéis, restauração, o que for. O que eu não aceito é esta mania de tratar o contribuinte como um saco de dinheiro com pernas, útil para pagar a parte chata e desaparecer quando chega a parte boa. E aqui entra a pergunta que devia estar no centro de tudo e a que ninguém quer responder porque dá cabo da narrativa: se o negócio é assim tão bom, tão rentável, tão óbvio, tão “estratégico”, porque é que não são os privados a assumir o investimento e o risco, tal qual acontece no Algarve, por exemplo? Por que razão tem de ser o Estado a pagar expropriações, infra-estruturas e a abrir caminho para depois o privado explorar? Desde quando é que a boa gestão pública passou a significar isto, que é, na prática, socializar o risco e privatizar o ganho? Isto é capitalismo de compadrio com gravata e sorriso, aquele modelo em que o Estado é indispensável só quando é para despejar dinheiro e facilitar o terreno.
E não me venham com a conversa de que “o Estado tem de dar o empurrão”. Um empurrão é uma coisa limitada, transparente, temporária, com contrapartidas claras, metas, auditoria, penalizações, prazos, e sobretudo concorrência real. O que se vê é o contrário: uma sequência de decisões que começam como “estratégia” e acabam como compromisso eterno, porque depois ninguém quer admitir que a conta ficou maior do que o cartaz. Um Estado moderno não pode ser uma seguradora gratuita de projectos privados. O Estado, se tiver de intervir, deve fazê-lo para criar condições gerais: licenciar com rapidez e rigor, garantir regras estáveis, proteger património natural, investir em infra-estruturas que servem muitos sectores, reduzir burocracia absurda, garantir concorrência e transparência. Não para escolher vencedores e construir-lhes o palco.
E acrescento um detalhe que faz muita diferença, mas que raramente entra nestas crónicas: desenvolvimento não é só “crescer”. Desenvolvimento, se for digno do nome, tem de ser medido em efeitos líquidos e em distribuição de ganhos. Quantos empregos permanentes cria, com que salários, com que qualificações, com que estabilidade? Quantos são empregos sazonais, precários, mal pagos, que deixam as pessoas presas a um modelo onde a vida inteira depende do humor do turismo? Que impacto tem no preço da habitação, na pressão imobiliária, na expulsão de residentes, no aumento do custo de vida? Que efeito tem na mobilidade e nos serviços públicos locais? Que compensações existem para as comunidades afetadas? Que mecanismos garantem que os ganhos fiscais são reais e não se evaporam em engenharia fiscal e benefícios específicos? Isto é o que devia ser “seriedade”. Não é gritar “progresso” e chamar “força do mal” a quem pede contas. No final, o texto de Miguel de Sousa, pessoa contra a qual nada me move, reduz-se à ideia de que questionar é um defeito, enquanto aceitar sem discutir é virtude. No entanto, o verdadeiro progresso exige debate, transparência e confrontar escolhas, especialmente num território onde os recursos são limitados. Se o projecto é realmente sólido, deve ser avaliado com números claros, impactos assumidos e alternativas comparadas. Frases como “nem água” podem soar bem, mas não resolvem prioridades nem justificam o Estado servir de patrocinador para negócios que deviam ser sustentáveis por si próprios.