Natal: a Solidariedade não pode ser sazonal
Chegamos a dezembro e enchemo-nos de luzes, de afetos e de gestos solidários. É uma época bonita, em que parece mais fácil lembrar que todas as pessoas merecem cuidado. Mas, por mais aconchegante que seja esta sensação, há uma verdade que não podemos ignorar: a vulnerabilidade não escolhe datas. E a violência também não.
Em 2024, a PSP recebeu 15.781 queixas de violência doméstica e deteve 1.281 agressores — um aumento significativo face ao ano anterior. Nesse mesmo ano, 62,5% dos inquéritos de violência doméstica foram arquivados e apenas 13,9% resultaram em acusação. Entre janeiro e agosto de 2025, a APAV apoiou 14.008 vítimas de crime e violência, das quais 75% em contexto de violência doméstica e mulheres. Segundo o Observatório das Mulheres Assassinadas (OMA) da UMAR, 24 mulheres foram mortas em Portugal entre 1 de janeiro e 15 de novembro de 2025, na sua maioria em contexto de relações de intimidade ou violência de género. Estas estatísticas revelam algo duro: milhares de mulheres continuam a viver com medo, muitas vezes sem proteção suficiente, demasiadas continuam sem ver justiça e todos os anos são mortas mais de duas dezenas.
É aqui que o espírito natalício, tal como o cultivamos, se revela insuficiente. Porque ser solidário/a num mês não chega para transformar realidades que exigem atenção permanente. Doar brinquedos, apoiar cabazes ou participar em campanhas é valioso, mas não substitui o compromisso contínuo de olhar para a violência doméstica como aquilo que é: uma violação de direitos humanos.
A maioria de nós imagina o Natal como um “lar seguro”. No entanto, para muitas mulheres e crianças, o lar continua a ser o espaço mais perigoso. Mesmo quando falamos de mulheres seniores, pois a violência entre filhos e mães está a aumentar imenso. E esta é talvez a contradição mais violenta da quadra: celebramos o aconchego da família enquanto, ao nosso lado, alguém teme regressar ou permanecer em casa.
Precisamos de trazer a empatia natalícia para o resto do ano. De aprender a ouvir e acreditar. De denunciar quando é preciso. De exigir respostas eficazes das autoridades. De garantir que nenhuma mulher é deixada sozinha por falta de alternativas, apoio psicológico ou independência económica. E precisamos, sobretudo, de educar — nas escolas, nas famílias, nos espaços públicos — para a igualdade, o respeito e a resolução não-violenta de conflitos.
A mudança não depende apenas de políticas. Depende de mentalidades. Depende de cada um/a de nós: vizinhos/as atentos, amigos/as conscientes, colegas que não ignoram sinais, cidadãos e cidadãs que reconhecem que a violência não é um problema privado, mas um falhanço coletivo.
Este Natal, podemos continuar a dar presentes. Mas podemos dar mais. Podemos dar presença. Podemos dar voz. Podemos dar apoio real. Um gesto isolado não muda um sistema — mas a continuidade muda.
Que esta época não seja um parêntesis de bondade, mas um lembrete de que a dignidade e a segurança não têm época. E que a verdadeira solidariedade é a que se pratica todos os dias. Boas festas a todas as pessoas.