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Análise

Um brilho ilusório

A Madeira é um destino próspero, mas precisa de ser também um lugar justo

A caminho de mais um Natal, nas casas e nas ruas das duas ilhas que habitamos acendem-se luzes, multiplicam-se cores e fomenta-se a abundância. As mesas enchem-se de tudo o que o imaginário festivo dita e as compras avolumam-se como se o ritual consumista fosse, por si só, uma prova de felicidade. O problema é que para além do brilho aparente, e talvez ofuscados pelo mesmo, há dados tornados públicos que deveriam provocar, no mínimo, reflexão, mas acima de tudo, desconforto. Soube-se que sete mil madeirenses dependem hoje do Banco Alimentar Contra a Fome para garantir aquilo que deveria ser normal, o acesso aos bens alimentares. São sete mil ou talvez mais, pois a pobreza envergonhada e a solidão compulsiva porventura escondem uma outra realidade, bem mais severa e crítica. Um número que cai com estrondo sobre as mesas fartas deste fim-de-semana em que há recolha solidária, um murro no estômago que deveria obrigar a digerir mais devagar os intensos sinais dos tempos e a pensar mais depressa.

O contraste torna-se ainda mais perturbador quando se cruza esta cruel realidade com o facto da Madeira liderar o País em vendas de retalho alimentar. Em 2024, cada supermercado vendeu, em média, quase 16 milhões de euros. E não foram só os turistas a consumir. Cada residente gastou 1.902 euros em comida. E 12 anos bastaram para transformar a Região numa máquina de consumo que bate recordes atrás de recordes no sector alimentar.

Neste contexto, três questões impõem-se sem contemplações. Como é que a mesma terra que ostenta as maiores vendas do País tem, em simultâneo, milhares de cidadãos que não conseguem comprar o básico? Que modelo de sociedade é este que estimula o excesso, mas normaliza a carência e os desequilíbrios? Que espécie de Natal perpetuamos quando o que impera se enfeita de desperdício, delegando a solidariedade para um “saco” entregue à porta do supermercado ou para um vale digital?

A campanha do Banco Alimentar, para além de meritória continua a ser indispensável, mesmo que coincida com o tempo de concorrência atroz, em forma de promoções, saldos ou ‘black friday’. Mais, é um momento vital, apesar dos sacos cheios de generosidade temporária não resolverem de uma assentada as vidas vazias de respostas estruturais.

Na Região onde se gasta, consome e vende mais, ninguém deveria depender da boa vontade alheia para comer. Bastava que entre as luzes do Natal e as sombras da realidade não houvesse problemas escondidos debaixo do tapete festivo, resultantes de baixos rendimentos, do custo de vida alucinante e de políticas públicas que reagem, mas não previnem. Esta é a verdadeira factura do brilho aparente numa sociedade onde o consumo serve de anestesia e onde a solidariedade tem data marcada.

Desejamos que a recolha de bens sirva para encher cabazes, mas também para esvaziar ilusões. E que, no meio do consumismo que nos empurra para a compra fácil, haja espaço para uma pergunta difícil: Como é possível que, entre tanta abundância turística, comercial e social, continuemos a falhar no essencial?