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Crónicas

Ai a Festa!

O coração continuava lá, na terra, e o que nos dividia talvez fosse mesmo o sotaque

Quando os pinheiros começaram a piscar nas montras, Lisboa pareceu-me uma cidade estrangeira. Sem perceber como estava em Dezembro, num comboio de regresso ao sótão onde vivia na Amadora, com o coração pesado pela saudade. Na carruagem, naquela viagem que parava em todas as estações e apeadeiros, as pessoas falavam da ceia, se ficavam ou se iam à terra, onde tinham a casa mais bonita e onde se juntavam aos pais, aos irmãos, aos primos e aos amigos. Lá, nessas terras do interior, havia outra alegria, diziam as senhoras que o acaso colocara na mesma carruagem do que eu.

A linha de Sintra era ainda um caos mais ou menos democrático onde, todos os dias, de manhã e à tarde, pessoas de todos os feitios, idades e classes sociais se cruzavam na estação do Rossio. Nas carruagens ouvia-se falar português e crioulo e, de uma certa maneira, todos formavam uma massa de deslocados. As senhoras de cabelo penteado de cabeleireiro, roupa a condizer para o trabalho de secretárias e eu, ali, encolhida do lado da janela, fazíamos parte do grupo. Eu tinha vindo para estudar; elas tinham chegado anos antes, atrás de empregos melhores, de vida melhores. O coração continuava lá, na terra, e o que nos dividia talvez fosse mesmo o sotaque.

O meu remetia para o português das ilhas, se lhes contasse de onde vinha, teriam confundido tudo, Açores e Madeira, não fazia diferença, eram tudo pontinhos insignificantes a meio do mar. Mais ou menos como as terras de onde vinham, lugares difíceis de encontrar no mapa de Portugal que havia na sala quando fiz a quarta classe. A meu favor havia o exotismo, o calor tropical, as flores, as frutas e a paisagem; ter tido tudo isto sempre e não apenas em oito dias de férias. E estava ali, na universidade, de certo havia dinheiro para sustentar um filho fora de casa.

O caso não era esse. Os meus pais tinham mais determinação do que dinheiro, foi sempre assim, mas o resto era tudo verdade. A falta que me fazia o ar morno do Funchal e as flores de Inverno. A minha mãe devia estar a contar quantas flores de sapatinho havia em cada vaso e como estavam os junquilhos que, todos os anos, floresciam rente à parede, no canteiro das ameixeiras inglesas. O mesmo cheiro que, todos os Natais, se misturava com os bolos acabados de cozer e o ananás dos Açores e perfumava a casa do Laranjal.

Um Natal muito maior, muito mais longo do que aquele que me apanhou de surpresa em Lisboa, que não tinha cheiro, nem calor, nem missas do Parto, canja e galinha guisada, nem presépios do chão até ao tecto no canto da sala da televisão, nem a escadinha do Menino Jesus com as searas e as frutas. A nossa casa do Laranjal não seria tão bonita como as das senhoras na terra, algures no interior do país. A nossa casa era desconjuntada, feitas aos soluços, com acrescentos, mas tinha um jardim bonito e, apesar de não ser uma dona de casa exemplar, a minha mãe sabia torná-la acolhedora, sobretudo na Festa, quando não bordava e tudo estava arrumado e limpo.

Naquela viagem de comboio e nos dias seguintes, nesse Dezembro de 1990, apenas a ideia de ter passagem de avião comprada tornou aquelas semanas felizes. Sei que fui a jantares, ao cinema, estive com os amigos, que estudei e me diverti muito, mas arrumei a mala com tempo e que fui de coração sobressaltado para o aeroporto. Lembro-me de ter sentido que estava quase em casa ao ouvir o sotaque, o meu sotaque, nas conversas dos outros passageiros na porta de embarque. E também tenho a memória, daquelas que ficam frescas como se tivessem acontecido ontem, de ter pensado que nada seria mais triste do que passar a Festa longe de casa.