Populismo, o arché da atualidade?
Desde os primórdios da filosofia ocidental, que os filósofos pré-socráticos ao abandonarem a atribuição dos fenómenos naturais a mitos e deuses e procurarem a sua explicação na própria natureza, chamaram de “arché”, o que consideraram ser o princípio originário de todas as coisas, como fundamento último que desse sentido à realidade. Na política contemporânea, observa-se um movimento análogo: líderes populistas constroem narrativas em torno de um princípio absoluto, o “povo”, que passa a explicar e justificar todas as ações no espaço público. Refletir sobre o paralelismo entre o pensamento pré-socrático e o populismo contemporâneo, realçando as implicações dessa redução da complexidade social a um princípio único é o que seguidamente proponho. Para os filósofos pré-socráticos, a multiplicidade da natureza escondia uma unidade essencial.
Tales de Mileto identificava a água (humidade) como o princípio universal, Anaxímenes via o ar como fundamento, enquanto Heráclito, ao destacar o devir, compreendia o fogo como símbolo da transformação. Parménides, por sua vez, opôs-se ao fluxo heraclitiano, diferenciando a aparência da essência, e sustentando que o “ser”, existente em tudo que existe, é uno e imutável. O que unia estes pensadores era a tentativa de transformar o caos da experiência em cosmos, ou seja, em ordem inteligível. O arché não era apenas uma hipótese cosmológica, mas também um modo de organizar o pensamento humano diante da diversidade e do enigma da existência. Era o despertar e o raiar da primavera, no uso do conhecimento de forma racional. O Populismo, é uma prática política que procura mobilizar apoio popular através de simplificações, demagogia, promessas falaciosas ou apelos diretos ao sentimento, contornando instituições formais de debate e verificação. Na contemporaneidade, o populismo exerce função semelhante ao arché. Como refere Ernesto Laclau (1935-2014), o populismo não é uma ideologia em si, mas uma lógica política que constrói o “povo” como significante vazio: um termo aberto, capaz de agregar procuras diversas em torno de uma identidade unificadora. Dessa forma, a multiplicidade de conflitos sociais é reduzida a uma narrativa simples: o povo versus as elites, a nação verdadeira contra os inimigos internos ou externos. Hannah Arendt (1906-1975), já advertia que uma das tentações das massas modernas é entregar-se a explicações totalizantes que eliminam a complexidade do pluralismo político. Assim, o populismo, como o arché, traduz-se num esforço de unificação que, embora sedutor, corre o risco de obscurecer a amplitude e riqueza da realidade. E o paralelismo entre os dois fenómenos pode ser descrito em três dimensões, a saber, A busca pela origem comum: assim como os pré-socráticos procuravam um princípio originário para o cosmos, o populismo “constrói” o povo como essência da política; A simplificação da complexidade: tanto o arché quanto o discurso populista reduzem a multiplicidade a um fundamento único, capaz de explicar todas as tensões e contradições e O risco da absolutização: Platão já criticava os pré-socráticos por suas reduções elementares, propondo uma metafísica das ideias que superasse tais limitações. De modo semelhante, a crítica contemporânea ao populismo alerta para os perigos de homogeneizar o corpo social e eliminar o consenso, fundamental à democracia. Apesar da semelhança formal, há uma diferença fundamental: o arché pré-socrático é uma busca epistemológica, voltada para o conhecimento do mundo, enquanto o princípio populista é estratégico e performativo, e dirige-se à mobilização de afetos e à conquista de poder. A comparação entre o populismo contemporâneo e o arché pré-socrático é revelador de um traço comum da razão humana: a tendência a reduzir a complexidade a um princípio explicativo unificador. Embora essa abordagem possa oferecer clareza e coesão, pela sua simplicidade, ela também acarreta riscos, sejam eles filosóficos, como a limitação do pensamento, ou políticos, como a supressão do pluralismo. O estudo desse paralelismo demostra que a história do pensamento humano oscila entre a busca pela unidade e o reconhecimento da diversidade, um dilema que ainda estrutura tanto a filosofia quanto a política atual.