Este frio não existia
Esta casa será sempre um lugar caloroso, de lembranças que me abraçam
Este frio não era assim, não me lembro desta aragem passar por debaixo das portas e de a sentir nos ossos. A memória do Laranjal, a primeira que me surge, é a de um quintal com sol, de tardes onde o silêncio era interrompido por um carro a fazer a curva ou por um cão a ladrar ao longe. Aos sábados os vizinhos deixavam a telefonia ligada na música pedida; aos domingos os homens ouviam os relatos da bola.
É como se tivesse guardado apenas as sensações dos dias amenos, sem chuva, sem frio ou sem aquele calor que sopra de África com areia e ar quente. E nesse lugar não é só o tempo que é perfeito. No quintal duas laranjeiras fazem a sombra sob a qual a minha mãe borda, enquanto eu leio um livro numa espreguiçadeira de lona e madeira. Não estamos aborrecidas, não houve gritos por eu querer ir ao cinema. A minha adolescência está a passar e há uma jovem estranha a surgir.
E a minha mãe, uma senhora de meia idade com poucos estudos, consegue perceber melhor quem é a aquela pessoa que está ali com o nariz enfiado no livro. Não é a filha que imaginou, mas diverte-se com as roupas pretas, as calças de ganga e por aproveitar o que está esquecido dentro de gavetas e armários. O fato de tweed da tia Alice, a bolsa a condizer, os óculos velhos da tia Conceição, o casaco cinzento da avó e por misturar tudo para parecer novo.
Na minha cabeça, a casa do Laranjal ainda é a casa da minha mãe e do meu pai, estão ambos vivos, há dois cães e muitas galinhas, um muro forrado a hera e um jardim exuberante. E o meu irmão vai chegar para almoçar e falar dos planos para quando for escritor. A minha mãe sorri. O filho é ateu e complicado, mas não duvida do talento, daquele dom para escrever e contar histórias. Os exemplares do jornal estão guardados nas prateleiras do móvel antigo da televisão e são a prova do orgulho que sente.
Nem eu, nem o meu irmão estamos órfãos da inteligência e do espírito da dona Celina, bordadeira de casa e senhora capaz de entender quase tudo. A televisão e o móvel ainda existem, mostram que esse tempo existiu. A minha memória guardou como o mais feliz, tão perfeito que faz conta que nunca houve dias de calor tão abafado que calava tudo, até as galinhas ou com este frio que passa por debaixo das portas, chega aos ossos e se pega a tudo, à roupa e aos móveis.
E houve muitos, com dias inteiros de chuva, com frio a pedir muitos cobertores na cama. Os dias em que a minha mãe vestia collants de lã, vários casacos e tapava o pescoço com um lenço e nunca se sentava a bordar sem uma manta a cobrir as pernas. Lembro-me que se queixava muito, que as minhas tias falavam disso, muitas vezes, tantas como falavam de flores, mas estas não são as primeiras memórias, não é nisso que penso quando me lembro.
Esta casa será sempre um lugar caloroso, de lembranças que me abraçam.