Crónicas

Aquele calor que colava a roupa às costas

O calor não fazia mal? Eu não tinha dúvidas que ter a roupa colada às costas transpiradas não era bom para saúde

Nuvens grandes enchiam o céu e, cá em baixo, ao nível do solo, os azulejos da cozinha transpiravam como se fossem uma entidade viva. O ar que vinha da rua tornava a casa um lugar escorregadio e a minha mãe dizia que o tempo estava ao mar. As bolachas eram guardadas na lata ou não se podiam molhar no café ao lanche.

Na rua o sol alternava com uma chuva quente que, depois de passar, deixava um cheiro a terra molhada. O Outono estava a chegar e eu sabia que era uma questão de dias até a minha mãe suspender a praia e me obrigar a vestir roupas quentes, sapatos fechados como se chuva e frio fossem a mesma coisa.

E eu sabia que não era, todos os adolescentes sabiam disso, mas a comunicação com as mães tinha sido cortada e não havia maneira de as fazer compreender o inferno de ir para a escola com camisolas de lã. A tormenta começava ainda no autocarro, onde o cheiro a pessoas e a comida ampliava o desconforto de ir aos solavancos estrada abaixo com as janelas fechadas.

O pior era depois, na escola, quando o sol aquecia e o corpo parecia ferver. Eu lembro-me de me sentir infeliz, mais gorda por causa da saia grossa e da lã, com os tornozelos sujos de lama e de olhar para as outras miúdas. Não era a única, havia outros e outras como eu, com mães parecidas à minha. Quem parecia levitar acima da chuva e do calor era aquele grupo de miúdos bonitos, esses nunca erravam na roupa.

Tinham roupas adequadas aos dias quentes do Outono, ao frio, às visitas de estudo e às excursões, como tinham cadernos bonitos, livros bem forrados e uma bolsa que lhes ficava tão bem. Eu ficava a imaginar em que lojas encontravam aquelas coisas todas. Não era nas que a minha mãe entrava e onde regateava o preço. Talvez viessem de Canárias, eu sabia que havia por lá roupas e óculos de sol.

Os nossos mundos não se tocavam. O meu do Laranjal e o deles que, à hora do almoço, esperavam pelo pai ou pela mãe à porta da escola, enquanto os carros paravam e os salvavam da chuva ou de esperar por um autocarro na paragem. Se estivesse chuva os pés ensopavam, se estivesse sol o excesso de roupa dava comichão.

E a história voltava a repetir-se num autocarro velho, com as janelas fechadas, cheio e com miúdos da escola a balançar no corredor, de pé, as mãos transpiradas a segurar o banco e a incomodar as senhoras sentadas com a bolsa dos livros. A meio do caminho vagava um lugar, era bom quando calhava à janela. Sempre me podia distrair com as casas e as quintas, quem é que ali morava?

Pessoas ricas e de certeza como aquelas que iam buscar os filhos à porta da escola, que não tinham uma mãe como a minha, sempre preocupada com as doenças e o frio, com um agasalho para a chuva. O calor não fazia mal? Eu não tinha dúvidas que ter a roupa colada às costas transpiradas não era bom para saúde.