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Crónicas

Outubro

Não sei com que disposição as crianças e os adolescentes de hoje encaram as aulas, a maioria deve arrastar os pés e os livros para as salas

As aulas começavam a 1 de Outubro depois de três meses de férias, numa altura em que o tédio já nos tinha engolido inteiros e levado a vontade de descansar, de brincar e até de ir à praia. A escola podia ser um castigo, mas era também um bilhete para o mundo que, por mais que se gostasse, o Laranjal não passava de uma curva do caminho.

Não sei com que disposição as crianças e os adolescentes de hoje encaram as aulas, a maioria deve arrastar os pés e os livros para as salas. E do que me lembro, já era assim quando eu tinha 15 anos e, a não ser no dia dos pontos, ninguém falava da matéria. Ao intervalo as conversas versavam sobre roupas, cantores famosos, o filme que estava no Cine Casino e, claro, rapazes bonitos.

Às vezes o filme que estava no Cine Casino conseguia reunir todos os temas como foi o caso do Top Gun, na primeira versão de 1986 ou 1987. O Tom Cruise jovem era o homem mais bonito para as adolescentes que todos os dias entravam e saíam do Girassol, o anexo do liceu onde se dava a parte de letras, línguas e humanidades. E onde se contavam pelos dedos das mãos os rapazes.

No secundário, pelo menos nos anos 80, não era possível compor turmas plurais, com o mesmo número de raparigas e rapazes. As letras eram femininas, as engenharias masculinas e, por isso, avistavam-se poucos rapazes nos corredores do Girassol. A minha turma tinha apenas um.

E, ao intervalo, enquanto se mudava o caderno de Português para o de Filosofia, as conversas eram de adolescentes, todas mais ou menos românticas e a suspirar por um príncipe encantado. Um príncipe moderno, tal e qual o Tom Cruise ou o Michael J. Fox ou outro saído de um reclame qualquer.

As raparigas colavam posters no interior das portas do guarda-fatos e nas contra-capas dos cadernos com as caras sorridentes dos artistas a quem dedicavam um amor inabalável, mas isso nunca fiz e a minha mãe nunca permitiu colagens, nem mesmo do lado de dentro do armário do meu quarto.

A vida lá por cima no Laranjal era austera de todas as maneiras e não se cingia à falta de dinheiro. A minha mãe não gostava de santos e não havia imagens, nem sequer de Nossa Senhora de Fátima, e também não apreciava quadros e outros adereços de decoração. A nossa casa era um lugar funcional, quase minimalista onde, naturalmente, não se encaixavam as paixões platónicas de uma adolescente.

E não estava autorizada a pintar os lábios, nem a usar rímel ou a pintar as unhas com verniz. A roupa e os sapatos tinham de condizer e nunca podia ser de cores extravagantes, não por moral, mas porque, na verdade, a minha mãe fazia contas e tudo o que fosse além do orçamento era cortado. E não havia cinema, nem festas ou lanches a não ser que deixasse de comer bolos à tarde, no intervalo maior, quando corríamos para o pátio do liceu.

Eu não ia confiante, mas ia, queria ver mundo, falar com pessoas, queria que me falassem de uma vida diferente daquela que tinha, lá em cima no Laranjal, onde tudo se limitava ao essencial, ao que era preciso, ao que fazia falta. Uma adolescente quer sonhos, brilhos, quer um futuro repleto de romance, quer amar como nas histórias das telenovelas.

Os outros podiam arrastar os pés para as aulas, eu corria para aprender nas aulas e até naquelas conversas de roupas, de namoros. E corria para perceber que não era tola, havia mais como eu, miúdas a ser miúdas, a atar o cabelo com fitas de cetim e a colar posters nas contracapas dos cadernos. Isso era tão bom, tão distante daquela austeridade cheia de regras e minimalista da minha mãe.