Crónicas

A viagem e a mensagem

Viver com alguém é sem dúvida a prova dos nove para qualquer relação de amor. Viver com alguém durante uma ou duas semanas, numa cidade, região ou país diferente, é o algodão que não engana a amizade

Se queres conhecer um amigo, alguém que queiras levar para a vida e que faça parte da tua história, não de uma forma superficial mas que marque de forma indelével e te acompanhe nos diversos momentos, faz uma viagem com ele. Aí ficas a perceber de uma forma translúcida os seus comportamentos, o altruísmo ou egoísmo, a forma de estar e de ser, o humor ao acordar ou adormecer, a transformação perante determinadas situações e a leveza ou peso que colocam a cada alteração de circunstâncias, tão frequente quando vamos para fora e saímos das nossas dinâmicas habituais. No dia a dia é tudo mais fácil. Mesmo que falemos todos os dias com alguém, não exige a presença permanente nem tão pouco o confronto de interesses. Existem combinações, programas, muitas vezes um suporte emocional quando estamos mais frágeis, um apoio nas mais diversas situações e um alinhamento de vontades. Numa viagem tudo é novo e temos que nos adaptar a quem passa dias inteiros connosco e que tem as suas próprias ideias sobre o que quer fazer, os horários ou a alimentação. Ou nos preparamos para saber respeitar o espaço e os gostos de quem escolhemos para ir connosco ou podemos passar por dissabores, desilusões ou até cortes de relações que vinham sendo cimentadas há anos.

Viver com alguém é sem dúvida a prova dos nove para qualquer relação de amor. Viver com alguém durante uma ou duas semanas, numa cidade, região ou país diferente, é o algodão que não engana a amizade. Uma viagem é tudo sobre isso. Sobre viver com alguém num espaço temporal mais reduzido é certo mas que ainda assim nos leva ao confronto do que é bom para nós e para os outros, do que estamos dispostos a abdicar ou da vontade que temos em construir. Não é algo que possa ser imposto ou que se consiga fazer sacrifícios e várias vezes nada é na realidade o que sempre aparentou ser. Essa surpreendente magia do conhecimento mútuo em que nos aprofundamos quando vamos com alguém, pode revelar-se um autêntico e penoso pesadelo, se as energias não coincidem, se a partilha não se sobrepõe e se a disponibilidade para lidar com aquilo que é o lado B de outra pessoa (que raramente se dá a conhecer sem ser nestas situações), não existe. Por outro lado pode representar uma espécie de sonho que muitas vezes deixa mil e uma histórias gravadas na nossa memória, incontáveis momentos perfeitos, sintonia que nos deixa saudades mal termina, que nos faz recordar e nos aproxima ainda mais, limando a cumplicidade de uma forma tão leve e bonita que nos deixa um rasto de felicidade visível até para os mais distraídos.

Eu tenho a sorte de ter dois amigos com quem viajo todos os anos. Já fomos juntos a vários sítios, em diversas situações, mas há uma semana por ano em que já sabemos qual é o destino e fazemos de tudo, dentro das nossas agendas para não o falhar. Porque dentro das particularidades de cada viagem já passámos esse teste há muito tempo, conhecemos as dinâmicas de cada um quase na perfeição, o que podemos ou não fazer e até onde dá para ir. Não há chamadas de atenção, nem uma sobreposição de egos que possa gerar qualquer tipo de confronto. Há uma vivência conjunta que tanto nos preenche no meio de risadas, palhaçadas e picanços como no silêncio em que nos sabemos preservar. É sobretudo no respeito que temos uns pelos outros, na forma fácil e simples com que nos divertimos, na leveza com que nos ajudamos e apoiamos. Nas brincadeiras e nos jogos, nos copos de vinho ou na cozinha em que nos esmeramos para dar prazer uns aos outros. É o melhor de nós que vem ao de cima e que se encontra numa ilha onde precisamos de pouco mais do que estar ali a desfrutar da companhia de quem gostamos.

Estes momentos são super importantes na nossa vida. Parece que nos limpam a alma e nos carregam a bateria. Quando desligamos do muito que nos preocupa e nos conseguimos entregar numa amizade pura, que nos torna melhores pessoas, mais felizes e inteiros. Esse é o verdadeiro valor de uma viagem que se entrelaça numa relação em que nos confrontamos, em que aprendemos e em que nos ajudamos. A mensagem que sai e que fica de uma história que todos os anos, se torna mais parte das nossas vidas e que jamais iremos esquecer.