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O burro do Porto Santo

Sempre que abro a gaveta das fotografias, onde tudo cheira a mofo e a saudade, ele ecoa de novo na minha memória

Foi no Verão de 1976 que visitei pela primeira vez o Porto Santo. Tinha então 20 anos e uma Roleiflex mais velha do que eu. Com o seu negativo 6x6 a Rolei captou com extraordinária nitidez a paisagem clara e desolada da ilha. Quando hoje abro a gaveta das fotografias tenho dificuldade em reconhecer esse Porto Santo de há quase meio século. A verdade é que nem a mim próprio reconheço. Com o tempo tudo muda, em geral para pior...

Três anos antes da minha estadia, isto é, em 1973, o Ministério das Obras Públicas tinha decidido lançar um Concurso Internacional de Ideias para o Planeamento da Ilha do Porto Santo. O Concurso, que obteve o aval da União Internacional de Arquitectos (UIA), contou com um júri também ele internacional e competente. Entre as 126 propostas concorrentes, foi escolhida a solução de um consórcio holandês, a CONCARPLAN. Fruto de uma abordagem de planeamento integral, até então inédita no nosso país, o plano vencedor propunha-se reconstituir a “harmonia ecológica” da ilha, melhorar as condições de vida da população e evitar as assimetrias geradas pelo crescimento isolado da actividade turística. De assinalar, ainda, uma razoável recomendação: que se se desse preferência aos animais – burros e cavalos – como meio de transporte para residentes e turistas.

Já nos anos 80, porém, o Plano de Ideias foi abandonado pelo Governo Regional, que decidiu promover a execução de um Plano Director para o Porto Santo. O responsável por esse novo plano – que tinha o turismo como indiscutível matriz de desenvolvimento – concebeu um projecto que previa 3550 camas, que correspondiam a 5 hotéis de 500 camas, e 3 conjuntos de apartamentos de 350 camas cada. E assim se foi fazendo e desenvolvendo a monocultura turística desta singular ilha que, ao que parece, em breve estará dotada de excelentes infra-estruturas viárias, muito estacionamento e muitas rotundas.

Que pena! Quanto não daria um turista abonado, do Norte da Europa, para ouvir aquele melancólico zurrar do burro nas tardes sonolentas do Porto Santo? Sempre que abro a gaveta das fotografias, onde tudo cheira a mofo e a saudade, ele ecoa de novo na minha memória como cântico de louvor à terra e à sua desolada beleza.