Crónicas

Maio, mês de Maria

A fé que professava não incluía santos e santas em cima da cómoda, não havia sequer uma Nossa Senhora de Fátima e o único crucifixo da casa era o que estava no meu quarto

A minha mãe era uma senhora à moda antiga, daquelas que mandavam os filhos à escola e à catequese e defendiam que a disciplina começava cedo, com obediência a Deus e respeito em casa. A catequese tinha quase tanta importância como a escola, que não se faziam pessoas decentes sem os ensinamentos da Igreja, conscientes do bem e do mal, certas que todas podem pecar e todas merecem perdão. Na versão da minha mãe o melhor era pecar o menos possível e o perdão também só devia ser dado a quem estivesse arrependido.

No essencial pensava como as pessoas do seu tempo, com o toque do Laranjal e do rigor fundamentalista da minha avó, que não permitia mangas dos vestidos acima do cotovelo, mas que vivera as mudanças dos anos 60. Foi a época em os padres passaram a celebrar a missa virados para o povo e as mulheres deixaram de cobrir a cabeça para ir à igreja. A minha mãe encarnava esse espírito: ia à missa todos os domingos e dias santos, não comia carne na Quarta-Feira de Cinzas, nem na Sexta-Feira Santa e dizia-se católica praticante.

A fé que professava não incluía santos e santas em cima da cómoda, não havia sequer uma Nossa Senhora de Fátima e o único crucifixo da casa era o que estava no meu quarto. A minha mãe dizia que a crença, que Deus e Cristo viviam no coração e, como tinha medo de incêndios, nem uma lamparina acendia ao Menino Jesus na lapinha. A fé não era isso, nem rezar o terço que, quando dava na telefonia, mudava para as notícias, fazia-lhe mais jeito saber como andava o mundo, se vinha lá mais um aumento dos preços ou mais uma crise, se o escudo valia menos ou se aguentava perante a peseta.

Os tempos eram complicados e, apesar de nunca questionar a existência de Deus, não se fiava nos santos, nem na Virgem e até lhe custava a crer nas aparições aos pastorinhos em Fátima. E era estranho ouvir a minha mãe dizer que um católico não estava obrigado a acreditar em Fátima ou em Lourdes. Lembro-me de a ver explicar, enquanto enfiava a linha na agulha e a televisão transmitia em direto a procissão das velas, que Fátima não fazia parte dos dogmas da fé.

Os dogmas, acreditar neles, era o que nos fazia católicos. O resto podia ser dispensado, apesar das peregrinações que a paróquia organizava e das multidões a pagar promessas, a pé e de joelhos. A mesma pessoa que nos obrigava a ir à catequese e a ter aulas de Religião e Moral na escola era a mesma que nos libertava de Fátima, das aparições, dos pastorinhos e da história que todos os anos em Maio arrastava milhares de pessoas que corriam a celebrar e pedir milagres. A minha mãe era uma pessoa à moda antiga, mas era também uma mulher complexa.