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As guardiãs da memória

Na Madeira não olhamos para o Brasil como um destino de emigração da mesma forma como olhamos para a Venezuela, África do Sul e as ilhas do Canal. No entanto, o Brasil foi um dos principais destinos dos madeirenses na antiga emigração, de meados do século XX. Tive nessa vaga de emigração o meu tio Raimundo, que vindo para São Paulo em circunstâncias muito difíceis, representou bem a força da nossa gente. Num artigo de 2017, Maria Izilda S. de Matos e Nelly de Freitas da Universidade Católica de São Paulo referem que entre “1951 e 1963, a emigração na Madeira contabilizou 71.068 pessoas, das quais 28.572 vieram para o Brasil, numa média de 1.785 por ano.” Entre 1954 e 1963 o Brasil foi destino escolhido por 33,5% dos madeirenses que emigravam, de acordo com a mesma fonte.

O Brasil foi um destino maior dos nossos conterrâneos durante um largo período. Hoje, não podemos dizer o mesmo. De acordo com o Relatório da Emigração 2021, nesse ano entraram no Brasil 461 portugueses, numa tendência de queda acentuada de há alguns anos. Atualmente, é apenas o décimo sétimo país do mundo para onde os portugueses mais emigram.

O facto de a comunidade madeirense no Brasil ter tido um pico de emigração sem uma sustentabilidade nesse fluxo migratório pode justificar o facto de não falarmos tanto desta nossa comunidade. No entanto tal também acontece com outros destinos desta emigração mais antiga, como a Venezuela, ou a África do Sul. Podemos encontrar razões para tal na forma como estes madeirenses mantiveram a sua ligação com a Região. A mais simples seria pensar que os laços pura e simplesmente foram-se quebrando, diluindo no tempo, ao contrário dos nossos compatriotas emigrados noutras geografias. Mas tal não corresponde à realidade.

Encontro-me neste momento precisamente em visita ao Brasil, onde percorro durante 10 dias as cidades de Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Belo Horizonte e Salvador da Baía no âmbito do roteiro Portugal no Mundo: Caminhos para a Valorização das Comunidades Portuguesas.

Tenho tido a oportunidade de estar com madeirenses em diferentes Casas da Madeira. A primeira instituição que visitei foi a Casa da Ilha da Madeira de São Paulo, onde as músicas tradicionais e o sotaque madeirense fazem-nos sentir verdadeiramente na ilha. Na Casa da Madeira de Santos, encontrei aquela que se afirma ser a mais antiga casa da Madeira em todo o mundo, com origens em 1934.

Encontrei uma comunidade madeirense extensa, coesa, orgulhosa das suas raízes, trabalhadora, resiliente e discreta. E é neste ponto que julgo estar a resposta para o facto de não termos da nossa comunidade no Brasil consciência da sua dimensão e relevância por esta característica. Encontrei muitos madeirenses aqui radicados que conhecem a Madeira e que visitam a Madeira. E não é por terem na discrição uma característica presente que são menos relevantes. Merecem ser valorizados e estimulado o elo cultural que nos une enquanto portugueses.

Há uma outra característica particular na nossa comunidade madeirense no Brasil. Bem sabemos que a emigração portuguesa é uma história de superação e vontade, mas também de sofrimento, resiliência e saudade. Foi, não poucas vezes, contada no masculino. Era comum num casal o homem “ir à frente”, trilhar o caminho numa nova terra, empregos, rendimentos e um local para poder, depois, trazer a família. Há exceções que fogem a esse padrão e no Brasil encontrei uma comunidade que reflete um maior equilíbrio de géneros na emigração, em particular, precisamente na extensa comunidade com raízes madeirenses. O que registo com (grande) entusiasmo, permitam-me como feminista assumido, é o observar o papel das mulheres nesta comunidade. Um papel central de guardiães das tradições e da memória (como referem Maria Izilda de Matos e Nelly de Freitas), do grande acervo familiar coletivo que é a Madeira.

Um papel de grande importância, que pode, no fundo, ser a razão da discrição que se aponta a esta comunidade que lança um abraço fraterno que se estende do Brasil à Madeira e a Portugal Continental.