DNOTICIAS.PT
Crónicas

As mulheres

Não podia ser vaidosa, nem parecer bonita, nem mostrar o cotovelo ou os joelhos ou mais de dois dedos abaixo do pescoço

O sinal horário na telefonia cortava o silêncio da tarde, enquanto a minha mãe e a minha tia Alice despachavam trabalho para a casa de bordados. As duas sentadas em cadeiras de abrir, viradas para a janela, que sempre distraíam a ver quem descia do autocarro. A minha tia comentava o luxo das raparigas da vizinhança e, logo depois, com suspiro lamentava-me, que a mim faltava a presunção.

“Se eu fosse nova agora neste tempo...” dizia antes de enfiar a linha na agulha para o urdir o caseado. E eu, que podia usar o que quisesse, vestia-me de preto como uma viúva e trocara os saltos por botas pesadas. A minha tia Alice não percebia que uma rapariga nova andasse assim, sem verniz nas unhas e de cara lavada. Ela tinha feito tudo isso às escondidas da minha avó, tinha mendigado bocadinhos de batôm e pó de arroz às amigas.

Gostava de vestidos a mostrar os joelhos e de manga curta, do cheiro de perfume e de ter o cabelo arranjado, mas a minha avó via nisso vaidade e pecado e, quando descobriu, deitou fora os frascos com os restos de perfume e destroçou-lhe o orgulho. “E que mal havia naquilo, o que me podia ter feito? Não me ia desencaminhar por cheirar bem”. As desfeitas ainda a magoavam, 40 anos depois, como se nunca tivesse deixado de ser uma adolescente.

A minha tia Alice lembrava-se de todas. A vez que a minha avó lhe desfez o penteado com água da levada quando iam para a missa ou quando obrigou a modista a fazer uma manga que tapasse o cotovelo e estragou o modelo do vestido. Não podia ser vaidosa, nem parecer bonita, nem mostrar o cotovelo ou os joelhos ou mais de dois dedos abaixo do pescoço. Era o que dizia o padre na igreja e as famílias às direitas educavam as filhas assim, nesse rigor moral.

E era por isso que não entendia quando me via com aquelas roupas pretas, surradas, algumas tiradas do fundo da gaveta, misturadas com calças de ganga gastas e botas que pareciam da tropa, pesadas e sem elegância. As unhas cortadas rente, o cabelo comprido e liso e a cara sem uma cor. Podia lá ser naquele tempo em que as mulheres usavam mini-saias e exibiam cabelos frisados com permanentes.

Mas no início dos anos 90 aquela era a expressão de uma certa rebeldia, era a minha maneira de dizer quem era. A miúda do Laranjal que era também estudante universitária, que se tornara viajada e com o sonho de ser uma intelectual. A roupa mostrava os meus interesses em cinema e em livros, mas a minha tia lamentava que eu fosse assim, tão diferente do que ela considerava bonito.

E de facto foram necessários muitos anos até nos entendermos, a minha tia Alice e eu. No fim, ligava-me todos os dias de manhã, para falar das notícias e das dores que a afligiam. Era a minha leitora mais assídua, a mais crítica, a mais orgulhosa da sobrinha que, durante muito tempo, lhe parecera estranha e demasiado independente. E, nesse fim, nesses últimos anos, acabei por perceber que aquela tia complicada era também o resultado de uma época em quase todo fora proibido às mulheres, até ser uma adolescente a tentar ser mais bonita com bocadinhos de batôm e restos de perfume.