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O Funchal e o mar: história resumida em quatro parágrafos

A Democracia – com a nefasta ajuda da aluvião de Fevereiro 2010 – encarregar-se-ia de adulterar esse "aspecto de civilização"

No seu primeiro século de existência, o Funchal conviveu amenamente com o mar. As ruas do Sabão, do Esmeraldo e da Boa Viagem, cruzando as de Santa Maria e dos Mercadores, desciam suavemente até à praia tendo como pano de fundo o horizonte. Esta despreocupada convivência, que se ficou a dever ao domínio das rotas atlânticas, foi-se dissipando por inícios do século XVI. Atraídos pela riqueza gerada pelo tráfego do açúcar, os corsários começaram a frequentar a Ilha e o idílio acabou abruptamente em 1566, quando a armada de Monteluc saqueou a cidade indefesa.

Como um ouriço que se enrola sobre si próprio, o Funchal abrigou-se, então, por detrás de uma extensa cinta de muralhas cuja construção durou mais de duzentos anos. Em finais do século XVIII, ao longo da praia – da foz da Ribeira de São João ao “cabo do calhau” – interpunha-se um façanhudo muro de pedra basáltica pontuado por fortes e redutos. No século seguinte, porém, a evolução da artilharia militar converteu as velhas muralhas num estorvo. A capital da nova estância terapêutica queria-se aberta ao oceano e às suas brisas salubres. À beira-mar surgiram então os passeios públicos: a Praça da Rainha – nas imediações da “entrada da cidade” – e a Praça Académica – frente ao antigo bairro de Santa Maria do Calhau.

Em inícios do século XX, quando ao arquitecto Ventura Terra foi encomendado o Plano de Melhoramentos, já pouco restava da antiga muralha. Na praia, porém, tinha-se instalado uma parafernália de mercados, matadouros, fábricas, arsenais e barracaria variada. Nada disto cabia no ambicioso Plano de Terra, que queria ver o Funchal equiparado às sofisticadas estâncias turísticas do Mediterrâneo. Foi pensando em Nice e em Cannes que o arquitecto desenhou a elegante fachada atlântica da cidade: um largo boulevard marítimo que corria ao longo de toda a frente urbana. Entre o passeio arborizado e o mar, a praia, apenas.

Coube ao Estado Novo a concretização deste projecto. Nele participaram Raul Lino e o notável paisagista Caldeira Cabral, numa obra que se prolongaria até ao último quartel do século XX, da foz da Ribeira de São João ao “cabo do calhau”. Foi, todavia, sol de pouca dura. A Democracia – com a nefasta ajuda da aluvião de Fevereiro 2010 – encarregar-se-ia de adulterar esse “aspecto de civilização” que já em meados do século XIX Silvestre Ribeiro reclamara para a capital do Arquipélago. Um exército de tetrápodes, ETARes, vitrines com lanchas e toda a sorte de fancaria invadiu a Avenida e o generoso Campo Almirante Reis onde ela desagua. A ampliação do molhe da Pontinha fechará com chave de ouro este malogrado ciclo, abrindo portas à armada dos navios de cruzeiro e ao turismo de massas.

Para quando um novo ciclo que nos traga esse “aspecto de civilização” que os homens de cultura no passado tão justamente reclamaram?