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Ninguém é de ninguém

Há alguns dias, foram lançados os números mais recentes dos homicídios em contexto de violência doméstica. Em Portugal, morreram no primeiro semestre 16 mulheres e uma criança, mais de metade das vítimas de 2021.

A violência doméstica, sendo a sua maioria contra mulheres e crianças, é um crime de terrorismo. Por vezes, tenta-se compartimentalizá-lo, associando-o a determinadas caraterísticas socioeconómicas das famílias e vítimas. A realidade é muito mais complexa.

É verdade que as carências económicas e o desemprego são fatores que geram fragilidades a vários níveis. Mas sabemos que muitas pessoas, com carreiras profissionais estáveis e condições para serem independentes economicamente, também são vítimas de violência doméstica. Hesitam em pedir ajuda porque não querem deixar tudo o que construíram para trás e não querem ser “rotuladas como vítimas”. A violência doméstica é, portanto, transversal a todas as classes sociais, sendo os tipos mais prevalentes a violência psicológica e a física.

Apesar de, desde 2015, a legislação contemplar medidas preventivas como o afastamento e vigilância do arguido ou agressor, é do conhecimento público que estas medidas não são aplicadas de forma suficiente ou eficaz. São ainda, na maioria dos casos, as mulheres (e filhos/as a cargo) que têm que procurar refúgio em casas de abrigo. É claro que estas estruturas são fundamentais, mas ainda assim algo está a falhar, e muito. Porque é que continuam a morrer tantas vítimas de violência doméstica? Porque todos e todas nós estamos, de alguma forma, a falhar. Porque o sistema, como um todo, não dá uma resposta eficaz. Porque desvaloriza-se algumas denúncias, e não se age tão rapidamente quanto o necessário. Porque algumas sentenças são uma vergonha para o sistema judicial.

A violência doméstica causa um impacto profundo, na vítima e na família. As crianças e jovens que assistem a situações de violência doméstica ficam com traumas para toda a vida, podendo desenvolver transtornos depressivos e ansiosos e apresentar raiva e agressividade, dificultando as suas relações interpessoais e podendo, em alguns casos, reproduzir a violência a que assistiram na sua infância. Em paralelo com os outros mecanismos, a prevenção primária da violência, abrangendo também estas crianças e jovens, feita precocemente e de forma contínua e abrangente, é ainda muito pouco apoiada pelas entidades, mas é uma ferramenta fundamental para construir valores sociais de igualdade e respeito, de promoção dos direitos humanos e desconstrução de estereótipos de género, que estão na base da violência.

Termino com um alerta. As vítimas, que já passaram por todo o processo de denúncia e julgamento, precisam de mais apoio e de ferramentas que as ajudem a ter uma vida “normal”. Há que apostar mais na sua emancipação, também para prevenir a reincidência da vitimação, que é ainda muito elevada. As vítimas de violência doméstica não querem ser tratadas como coitadinhas. Querem viver em liberdade, em pleno direito e serem felizes, independentemente de terem, ou não, um/a companheiro/a. Ninguém é de ninguém.