A Guerra Mundo

Guerra na Ucrânia abre competição de "blocos" entre democracias e China e Rússia

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A guerra na Ucrânia vai implicar o regresso a um mundo de dois grandes blocos em "intensa competição", opondo as democracias à China e Rússia, num aparente processo de "desglobalização", considerou hoje o analista norte-americano Charles Kupchan.

"É provável o regresso a um mundo de dois grandes blocos, as democracias de um lado e Rússia e China do outro, dois grandes blocos em intensa competição, em processo de desglobalização, apesar de hoje dois terços do mundo comercializar mais com a China que com os Estados Unidos", assinalou Charles Kupchan, professor na Georgetown University e Senior Fellow no Council on Foreign Relations, na Conferência "A Aliança Atlântica e a Invasão da Ucrânia", organizada pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD).

"Um mundo de dois blocos em torno dos quais muitos países vão gravitar e decidir qual deles privilegiar", prosseguiu o académico, antigo conselheiro da administração do ex-presidente Barack Obama, intervindo por videoconferência num painel com a investigadora alemã Constanze Stelzenmüller (do Fritz Stern Chair on Germany and Trans-Atlantic Relations, The Brookings Institution), num debate moderado pela académica Ana Santos Pinto, e investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).

Os dois intervenientes sublinharam, em consonância, a alteração do "jogo" geopolítico na sequência da invasão militar russa da Ucrânia, iniciada a 24 de fevereiro, e com Kupchan a considerar importante "perceber como chegámos aqui", sublinhar que "[o Presidente russo Vladimir] Putin não entendeu a Ucrânia", referir-se a uma "guerra quente", com a Rússia a "ultrapassar" a linha, e sem incluir questões relacionadas com a eventual 'paranoia' do líder do Kremlin, agressão territorial, ou outras incidências.

"Em 2008, propor a adesão da Ucrânia e da Geórgia à NATO foi provavelmente insensato e herdámos a objeção a Rússia... os dois países continuaram a ser incentivados, é necessário ser diligente em relação aos países a quem se pretende oferecer garantias de segurança", observou, numa referência à cimeira da NATO de 2008 em Bucareste, que admitiu a inclusão destas duas ex-repúblicas soviéticas, e apesar das divergências internas entre os aliados.

Um dos pretextos para a atitude mais determinada da Rússia, que indicou nunca aceitar essa nova expansão da NATO, e que também serviu de pretexto para desencadear a invasão militar.

"Não devemos tornar um país estrategicamente importante após lhe oferecermos garantias" referiu, considerando que na atual fase do conflito a Rússia vai reforçar as suas posições no leste e sul ucraniano, apesar de admitir como possível uma contraofensiva ucraniana para recuperar o território perdido.

"No terreno decorre uma 'guerra quente', de momento contida, mas o espaço de manobra [do Presidente ucraniano Volodymyr] Zelensky está a diminuir", sustentou o académico.

"Diariamente são mortos mais ucranianos, mais sofrimento, mais refugiados, e é difícil perspetivar um acordo que envolva uma declaração de neutralidade e que implique o reconhecimento da Crimeia por parte da Ucrânia ou as independências das regiões separatistas de Lugansk e Donetsk, de maioria russófona".

Perante o atual cenário, Charles Kupchan considerou que a situação mais provável consistirá "na instauração de conflito 'congelado' que se prolongará por muito tempo. É uma 'guerra quente', mas de momento uma 'guerra quente' contida".

No entanto, admitiu um cenário paralelo: "É possível que [o conflito] se desloque um pouco mais para norte, através da intenção da Rússia em construir um corredor estratégico em direção a Kalininegrado", numa referência ao enclave da Rússia situado entre a Polónia e a Lituânia, nas margens do mar do Norte.

Uma perspetiva no geral partilhada por Constanze Stelzenmüller, que nas suas intervenções recordou o "massivo impacto" que a guerra provocou na NATO, e na sua "perceção de defender a Europa contra a Rússia".

Uma reação "imediata e correta" da Europa, devido a diversas implicações diretas, incluindo os mais de de quatro milhões de refugiados ou a decisiva questão da interdependência energética, "numa Europa que a Rússia tenta dividir" e que é encarada por Putin como "um perigo sistémico".

Stelzenmüller também sublinhou neste contexto o sinal de confiança fornecido pelo Presidente dos EUA, Joe Biden, incluindo no processo de aplicações de um extenso pacote de sanções a Moscovo, ou a atitude do Governo alemão, que considerou essencial para preservar a unidade entre os parceiros da União Europeia.

"Existe um maximalismo russo nos objetivos. O objetivo da Rússia não é a NATO, antes a Europa da democracia parlamentar. Recorde-se que a invasão da Crimeia [fevereiro de 2014] aconteceu após a União Europeia ter sugerido um acordo de cooperação económica à Ucrânia, esse foi o motivo, não a NATO", frisou.

Por sua vez, antes de abordar a situação política interna nos Estados Unidos, e após assegurar que a NATO irá receber de braços abertos os pedidos de adesão da Suécia e Finlândia, Charles Kupchan admitiu a "remilitarização" do flanco leste da NATO, assinalou que a Alemanha "virou a página" em termos de política externa e na decisão de se rearmar, mas mostrou-se mais cauteloso sobre a atual vaga de solidariedade europeia face à população ucraniana.

"Também questiono durante quanto tempo se vai prolongar, a longo prazo, a assinalável generosidade que os europeus demonstraram com os refugidos ucranianos, quando se depararem com os custos...", disse Kupchan. "As fontes do populismo liberal e da polarização que existiam antes desta guerra ainda estão connosco".

Na referência à situação política interna nos Estados Unidos e perspetivas de evolução, quando se aproximam as eleições intercalares de novembro, o analista norte-americano demonstrou alguma dose de ceticismo, admitindo o regresso de convulsões sociais também motivadas pelo contínuo aumento dos preços.

"Estamos num cessar-fogo entre democratas e republicanos, mas a animosidade política vai regressar. Admite-se um ressurgimento de [ex-presidente dos EUA Donald] Trump, a política nos Estados Unidos é muito imprevisível (...). Estamos num período de regresso da Guerra Fria sem um centro político nos EUA, e isso é novo", indicou.

Num mundo mais desregulado a nível da economia global devido ao impacto na guerra na Ucrânia, o académico também sugeriu que "o foco dos EUA face à China diluiu-se temporariamente", apesar de admitir que o atual conflito "vai acelerar as divisões geopolíticas que estavam em desenvolvimento" e prognosticar que as economias globalizadas ficarão mais vulneráveis.

Um período de turbulências que Constanze Stelzenmüller também não excluiu para a Alemanha, em "tempos de novo complicados para se ser alemão", e quando pela primeira vez após a Segunda Guerra Mundial o "motor económico da Europa" é governado por uma coligação de três partidos, cujas divergências poderão reemergir numa situação de grande instabilidade.

"Aquilo que este Governo alemão conseguir fazer, ou não, será decisivo para o futuro da Europa", advertiu nas suas declarações.