Crónicas

Putin que o…

1. Disco: o disco é de 2020, mas mereceu uma edição especial em 2021. “Canções do Pós-Guerra”, de Samuel Úria, é um grande disco. Folk, blues, pop, que nas mãos de Úria sofrem sempre um toque muito característico e especial. Para mim um dos melhores valores da música portuguesa actual.

2. Documentário: “Winter on Fire” é um documentário sobre os eventos da revolta de EuroMaidan, em Fevereiro de 2014, onde estão parte das origens da situação que vivemos hoje.

Devia ser visto por PCP’s e BE’s. Evitava muitas asneiras e tibiezas.

3. É incontornável falar do que se passa na Europa, nestes dias difíceis, e não podemos cair no facilitismo de pensar que, o que agora vivemos, começou no dia 24 de Fevereiro. A guerra na Ucrânia não teve o seu início agora, leva já 8 anos. A invasão é o último episódio de uma filme, que ainda não acabou, de série B. Um filme que até podia ter como título: “A I Grande Guerra Digital”.

Para entendermos o conflito temos de recuar, no mínimo, a 2014, quando grandes manifestações na Praça Maidan, levaram ao afastamento do presidente pró-russo, Víktor Yanukóvytch.

Foi com grande “investimento” em informação e contra-informação por via digital, cujo objectivo era o de adormecer o ocidente criando uma história alternativa, que a ocupação da Crimeia e do Donbass foi possível. Uma campanha que resultou em pleno, pois ficámos todos a assobiar para o ar, enquanto tropas russas ocupavam terra ucraniana, justificando o acto com um pseudo-referendo, feito sob a ameaça das baionetas. O argumento era o de que a Crimeia sempre fora russa. O que é falso e revelador do revisionismo histórico, onde se apoia o neo-sovietismo de Putin. Gregos, persas, romanos, bizantinos, godos, genoveses, otomanos, mongóis, russos, tártaros, ucranianos, são alguns dos povos que passaram pela península. A Crimeia tinha um estatuto de plena autonomia dentro da Ucrânia.

É comum falar-se dos Acordos de Minsk e todos se esquecem do Memorando de Budapeste, onde a Ucrânia se comprometia a dar à Rússia todo o seu arsenal nuclear e em troca a Rússia comprometia-se a nunca pôr em causa as fronteiras e o território ucraniano.

Aquando do Holdomor, a grande fome decretada por Estaline, a Crimeia foi tida como ucraniana e sofreu tanto como o restante país. E na altura, na divisão soviética, nem fazia parte da Ucrânia.

Nada disto é novo. A desinformação já era uma das ferramentas favoritas dos soviéticos, grandes especialistas em rever o passado, de modo a pô-lo conforme os seus interesses, criando alternativas espúrias ao que realmente aconteceu.

O que havia de novo, em 2014, era a tecnologia, as redes sociais permeáveis: a guerra híbrida como nova metodologia. Uma guerra que não mata de armas na mão, uma guerra de manipulação do coração e das mentes, uma guerra invisível.

A Rússia de Putin, porque não dos russos, teve muito por onde treinar. Os referendos na Escócia e do Brexit, as eleições americanas de 2016, manobrando as redes sociais — especialmente o Facebook. Não foi difícil aprender a manejar e a explorar esta plataforma, que estava aberta a quem a quisesse “invadir” e completamente fechada, porque ninguém se apercebia da manipulação.

Tudo foi efectuado debaixo das barbas do ocidente e ninguém viu nada. Ou não quis ver. Ninguém fez caso dos poucos relatórios e investigações dos serviços de informação de alguns países, que indicavam, com clareza, o que se passava.

Repito: a I Grande Guerra Digital já começou há muito tempo. Não foram interferências inofensivas, é uma guerra, somos atacados há alguns anos por uma nova versão daquilo a que Ronald Reagan chamou, o Império do Mal.

Mas Putin, que manipula o ocidente a seu belo prazer, cometeu um erro. O erro da soberba, o erro da má avaliação. É incompreensível a incapacidade russa de recolha e análise de informação.

Menosprezaram a liderança de Zelensky (a quem chamavam “palhaço”), a vontade de resistir dos ucranianos, a capacitação das forças armadas de Kyiv que não é, hoje, a mesma de 2014, tornaram-se maiores e modernizaram-se ficando muito mais capacitadas.

A combinação de incompetência, cegueira ideológica e autoritarismo, motivada pela arrogância de Putin e dos seus, conduz a resultados que começam a saltar à vista: nem a invasão é legítima, nem teve os resultados, no imediato, esperados.

Depreciou os ucranianos e conseguiu, no final, aquilo que não queria: a unidade do mundo que ama a liberdade, a unidade contra a prepotência, a unidade contra o fascio-comunismo messiânico do Kremlin.

O ocidente, a União Europeia, não deve estar imune a críticas. Forma muitos os erros cometidos. Fizemos como os três macacos que não ouvem, não vêem, nem falam, não tendo em consideração os avisos que surgiam aqui e ali, e isto terá um enorme preço. Está a ter um enorme preço. Preço que todos teremos que pagar.

Putin é um jogador, não é um estratega, embora pense o contrário. Com a invasão da Ucrânia conseguiu unir o que andava desunido: a Europa. Faltava a vontade. Ele deu-a.

Era bom que o ocidente, as democracias liberais, tenha aprendido a lição. Aprendido que não se pode contemporizar e desvalorizar totalitarismos, em nome de interesses dúbios e economicistas.

A invasão da Ucrânia não é só uma guerra na Europa. É muito mais do que isso. É uma guerra contra a Europa e o que ela representa.

4. Permitam-me o pecado de estender-me um pouco: se os ucranianos conseguirem resistir por mais uma semana, o que não é impossível desde que o ocidente faça chegar armas e munições rapidamente, os russos vão ter de se sentar à mesa de negociações numa posição desconfortável, e negociar a sério. Calcula-se que os custos da invasão, por dia, andam acima dos 20 milhões de euros. Os arsenais russos esgotam-se e será necessário comprar mais, para repor os gastos. Esgota-se o dinheiro, as armas, os recursos. E as sanções começam a fazer mossa. Muita.

5. Há dois factores determinantes na análise da capacidade de combate entre forças antagónicas: os recursos das forças e a vontade de combater. Nos recursos contamos com coisas como os números e a tipologia dos meios envolvidos (meios aéreos, artilharia, número de soldados, qualidade do equipamento, treino recebido, logística, capacidade de reabastecimento, informações, etc.), e na vontade de combater avaliamos a moral das tropas, o acreditar na causa, o apoio recebido dos seus e do seu governo, das chefias directas, a camaradagem. São muitos os exemplos ao longo da história onde a vontade de combater superou os recursos superiores. Os portugueses mostraram isso em Aljubarrota, em 1385.

Com o que nos é dado a saber, no momento os recursos estão do lado dos russos, mas a vontade de combater está do lado dos ucranianos.

6. Não podemos, de maneira nenhuma, confundir os russos com Putin, as suas chefias militares e a oligarquia que os suporta.

Entre nós, vivem muitos que já estão suficientemente envergonhados para, ainda por cima, terem de levar com ódios miseráveis.

7. “I hope the Russians love their children too…” - Sting