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Madeira 19-23

O mundo viveu praticamente os últimos três anos em estado de sítio: primeiro, devido a uma pandemia de consequências inéditas na actualidade; depois, com o início de um conflito armado, a invasão da Rússia à Ucrânia, cujo desfecho e ameaça global permanecem incertos; e, finalmente, enfrentando as consequências económicas e sociais que resultam da crise que ambos os eventos desencadearam.

Na Madeira, confrontados com as consequências regionais desta crise global, é difícil compreender como podemos todos conviver tão serenamente com as sucessivas desgraças colectivas que nos atingem e que encaramos com relativo silêncio, indiferença e inacção perante tanta, angustiante e trágica aparente inevitabilidade. As notícias do último mês deveriam ser suficientes para suscitarem o sobressalto cívico de uma sociedade desperta, de quem se espera que reste ainda alguma energia reactiva, mas a quem parece sobrar apenas apatia perante o desespero aflitivo de tantos.

E não, não são poucos. Não são poucos quando aos números da emigração somamos os números da pobreza: os que já lá estão e os que vivem sob a ameaça constante de irem lá parar. Não são poucos quando olhamos para as taxas de juro dos créditos à habitação a subirem, prontos para sufocarem mais famílias, apenas superados pelos preços da habitação inflaccionados por um mercado premium inacessível à maioria. Não são poucos quando olhamos para os que continuam sem qualquer acesso à habitação, porque o PRR está desenhado para ajudar os mais pobres dos pobres e os vistos gold desenhados para os mais ricos dos ricos. Não são poucos quando olhamos para as listas de espera e para a solução que se aponta de pagar no privado pela saúde que não se tem. Não são poucos quando olhamos para os custos de vida crescentes que os salários não acompanham. Não são poucos quando olhamos para os que caem nas malhas do álcool, das drogas, das dependências e encontram na pequena criminalidade o único modo de sobrevivência, a que respondemos com demagogia sobre combater subsidiodependência e colocar militares nas ruas. Não são poucos quando olhamos para gerações atrás de gerações vítimas das consequências de sucessivas crises, a quem o que sobra dos sonhos são desilusões.

Não são poucos - mas não têm de ser tantos, porque não tem de ser assim. Não tem de ser assim porque para alguns problemas há soluções concretas que não se aplicam sem razão aparente. Enquanto isso, as pragas multiplicam-se: a dos mosquitos; a dos fluxos turísticos mal planeados; a do trânsito; a dos estacionamentos estapafúrdios; a da insegurança crescente. Pelo meio, a taxa turística que não servia afinal agora serve, como se para o turista interessasse quem cobra, e a Polícia Municipal que era inútil agora faz falta sob a forma de Exército Municipal - tudo resultado de discussões que invocam argumentos que não sobrevivem nem à coerência do tempo, nem à informação esclarecida.

Em 2019, a maioria dos madeirenses escolheu mesmo mudar - e se a Madeira não mudou foi apenas porque uma elite confortavelmente instalada no sistema vigente decidiu que o melhor para si e para os seus era manter tudo na mesma. Daqui a menos de um ano, os madeirenses voltarão a pronunciar-se, num quadro cada vez mais claro em que de um lado os do costume defenderão mais do mesmo e do outro é urgente que não nos percamos em narrativas divergentes sobre uma realidade clara e que exige discursos inequívocos de alternativa para a vida real dos madeirenses. De pouco nos servirá discutirmos partidos se não falarmos sobre soluções concretas que todos compreendam e que façam verdadeiramente a diferença para quem mais precisa no imediato e para o nosso futuro, a começar pelo próximo Orçamento Regional.

Perante a crise galopante, a pior coisa que nos pode sobrar é um Governo Regional desorientado e desligado, uma oposição espartilhada e um povo anestesiado. Talvez os golos de Cristiano Ronaldo, em quem continuamos a depositar total confiança, e o sonho do Mundial nos ajudem a despertar a esperança nas possíveis conquistas de amanhã.