Crónicas

Carros e fotografia(s): espetadores de outros tempos

FOTOGRAMAS

Entrámos na segunda semana de agosto volvida a 62ª edição do Rali Vinho da Madeira, grande fenómeno na Madeira, cujas dimensões particulares de risco, perigo e superação dos mesmos (indubitavelmente associadas ao fervor da sua receção), se dão a par das condições orográficas e de uma concentração geográfica específica ao território da ilha, porventura remontando na memória coletiva às origens de uma rede viária sinuosa e incipiente que, como sugerido a semana passada, colocou particulares desafios à vinda e circulação do primeiro automóvel na Madeira, trazido em 1904 pelo comercial inglês Bernard Harvey Foster.

São relatos desse entusiasmo – não só relativos à volta propriamente dita como ao mero avistamento dos “bólides” – que marcam a primeira edição do rali. Esta teve lugar em 1959, sendo o vencedor o “continental” José Lampreia ao volante de um MGA, e vão ser precisos seis anos para que um natural da terra vença pela primeira vez a prova, sendo o autor do feito Zeca Cunha que conduzia um Triumph TR4.

Sendo ambas máquinas da modernidade – que à medida que vão sendo aperfeiçoadas adquirem leveza e velocidade –, carros motorizados e câmeras fotográficas propiciam em certa medida experiências similiares entre si, cujo paralelismo se pode estabelecer quer através de uma comparação entre a condição de condutor e a de fotógrafo, quer entre a de público de uma prova / sujeito fotografado. Com o advento da fotografia moderna no século XX e seus aparelhos mais ergonómicos (e agora) com a capacidade de tempos de exposição menores que os da duração mínima percetível ao olho humano, fotografar torna-se em grande medida um ato de espera e de incisiva decisão – o historiador visual brasileiro Mauricio Lissovsky demonstra isso mesmo num livro de fulgor filosófico elucidamente intitulado A Máquina de Esperar (2014). Essa espera ativa ou (como este autor refere) “expectação”, adivinha o momento do clique do obturador e propicia o instante fotografado, nesse sentido evocando a rapidez mas também o exercício de paciência e antecipação pelo gesto certo numa determinado tempo e espaço que de algum modo caracteriza a condução em geral e a exigência da mesma numa prova de automobilismo, em particular. Quando exatamente apontar a objetiva e acertar na abertura da lente antes do disparo? Quando precisamente virar o volante e inserir uma mudança antes de travar ou acelerar? Etc. Já ao nível da experiência do público de uma prova / sujeito que se faz retratar, trata-se de uma espera distinta, simultaneamente passiva e ativa. Passiva pela incapacidade em se controlar (e se “modular”) quando se dará efetivamente a captura pelo fotógrafo / pela incapacidade em saber (e “responder”) exatamente à passagem dos carros, tanto mais difícil de adivinhar nos locais das sinuosas curvas deste rali. Ativa pela necessidade de atenção às possibilidades do seu próprio aspeto e pose perante a objetiva / pela atenção exigida à sua condição de espetador de forma a que a velocidade da passagem do acontecimento (entenda-se, dos carros) não supere a tal capacidade humana de perceção de uma duração e, portanto, viabilizando a efetiva absorção e disfrute do acontecimento. E de algum modo há algo que sempre escapa nessa relação: a passagem (do clique / do carro) é sempre demasiado rápida para os sentidos, sendo porventura também aí que reside o fascínio e proveito do “custo” de minutos / horas à espera, ou seja, no impato e mistério daquilo que é veloz e daquilo que na velocidade sempre nos escapa.

Referia que a prova em que o primeiro madeirense ganha o rali na região foi em 1965 e que o carro que a venceu foi um Triumph TR4. Em vários estudos académicos sobre fotografia dos últimos dez ou quinze anos fala-se muito da dimensão material e objetual deste medium, na biografia social das imagens que são coisas (e não meras imagens em suspenso, desprovidas de uma fisicalidade): suas circulações, trânsitos, migrações e redimensionamentos (intermedialidades, passagens de uns suportes a outros). Nesse âmbito, fala-se das suas resignificações, por exemplo, quando anos após a sua produção uma fotografia reemerge num novo contexto podendo adquirir novas funcionalidades, sentidos e dimensões, ainda que quase sempre sob o signo da marca dos seus sentidos anteriores ou da sua aura histórica.

Recuperado, trazido à ilha de Lisboa e mandado restaurar pela mão do mesmo Eduardo Jesus autor do livro sobre o primeiro automóvel a rolar sobre solo madeirense (e mencionado a semana passada), o carro com que o piloto Zeca Cunha venceu a prova de 1965 circula hoje de novo pelas estradas da ilha, ganhando uma nova vida ao ser alvo de um minucioso restauro. O mesmo pode acontecer com fotografias que estão durante anos engavetadas, encaixotadas, a deteorarem-se, parecendo indelevelmente votadas ao esquecimento (e “morte”). E foi precisamente o que aconteceu a algumas imagens do imenso espólio fotográfico da família Vicente’s, como se sabe proprietária durante gerações de um estúdio fotográfico que hoje alberga o Museu de Fotografia da Madeira, estando algumas delas presentes na sua exposição permanente e outras na temporária recentemente inaugurada, A Paisagem nos Primórdios da Photographia Vicente. É a partir de algumas delas que tentarei falar sobre o género “paisagem” na próxima semana.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.