Crónicas

«A clerical mania de querer ter razão»

Num dos primeiros artigos sobre a pandemia, invoquei os «cisnes negros» de Nassim Nicholas Taleb, aqueles acontecimentos imprevisíveis mas profundamente impactantes que alteram o rumo da história – e que requerem, por isso, respostas também elas diferentes. Por essa razão, a afirmação que se repete desde o início – a de que «está tudo controlado» perante uma situação pandémica é muito preocupante. E é-o porque é impossível ter controlado o que tem um grau tão acentuado de inconstância.

Igualmente inquietante é a vontade de querer provar que esse controlo é anterior e melhor do que quaisquer outros esforços – nomeadamente ao que é adotado no Continente. Num dos debates da Assembleia, o Secretário da Saúde teve a veleidade de afirmar que por cá tudo corria muito bem porque mesmo antes da DGS saber o que era exatamente a Covid-19, já o Sistema Regional de Saúde esboçava um plano para combate ao vírus e formava profissionais para o que aí vinha, uma precoce e inaudita preparação se pensarmos que a primeira vez que a Organização Mundial da Saúde (OMS) se referiu ao vírus foi a 9 de janeiro de 2020 e só declarou o coronavírus como uma pandemia em março de 2020.

Mais recentemente, perante o anúncio da Ministra da Saúde de que os contactos considerados de menor risco começariam a ser testados no Continente, também o Secretário Regional da Saúde veio imediatamente alegar que essa testagem nunca tinha deixado de acontecer na Região. Ora, tal não corresponde à verdade. Por exemplo, nas escolas a prática é a de enviar turmas, professores/as e auxiliares que tenham estado em contacto com um caso positivo para confinamento, sem testagem. Muitas das pessoas que estão em isolamento profilático também não são testadas; simplesmente é-lhes dito para esperarem que passem 14 dias e que depois disso podem sair. Isto significa que, apesar de terem estado em contacto com casos positivos, a testagem não acontece para a maioria das pessoas. Justificava-se essa testagem? Cientificamente haverá resposta. A OMS tem apelado a mais testagem. Independentemente disso, não é o que tem acontecido na Região, apesar do Secretário dizer que sim.

Mas as imprecisões não ficam por aqui: também tem sido dito – nomeadamente na Assembleia Legislativa Regional – que as pessoas que testam positivo são contactadas diariamente. Ora, isto também não corresponde à realidade. Há pessoas que tentam contactar as autoridades para obterem informações sobre o que devem fazer ou para reportarem sintomas, sem sucesso. Portanto, o seguimento diário é uma miragem.

Podemos perguntar se é realmente possível operacionalizar tantos testes e um acompanhamento diário dos casos – quer em termos do que isso representa financeiramente, quer em termos do que isso significa em termos de mobilização de recursos humanos. Com a escassez de recursos humanos que sabemos existir, muito provavelmente o que é anunciado não é simplesmente exequível. Mas o desfasamento entre o que é dito e o que realmente acontece origina insegurança e com isso uma maior vulnerabilidade das pessoas, que esperam que aconteça consigo o que é prometido. Quando tal não acontece, quando não são testadas, quando não são acompanhadas diariamente, quando não conseguem obter resposta das linhas que lhes são disponibilizadas – são as pessoas que estão na primeira linha que levam por tabela. Claro que o problema não está em quem não consegue fazer mais; o problema está em quem promete o que sabe não poder ser cumprido. Se há uma coisa em que este Governo é muito eficaz é mesmo na propaganda. Mas esquece-se de que cada uma destas pessoas que não é testada, que não é acompanhada, que é abandonada à sua sorte, sabe a verdade. Qualquer profissional que trabalha sob pressão a tentar cumprir o impossível, sabe a verdade.

São tempos muito difíceis os que vivemos. A pandemia trouxe uma crise de que não há memória, com características diferentes das anteriores; primeiro porque estamos perante uma crise mundial que afeta a maioria dos setores em todo o mundo: a saúde, a economia, a educação, a empregabilidade, a cultura, o desporto e, claro está, a política. Uma das principais consequências é o facto de não haver territórios para os quais as pessoas possam partir à procura uma vida melhor. Numa Região como a nossa, profundamente alicerçada no setor terciário, nomeadamente no turismo, deixou de ser alternativa fazer as malas e partir. Em janeiro, a Região registou a mais alta taxa de desemprego do País (10,7%) – e ainda aqui vamos. Com as medidas adotadas para controlar a pandemia (com prolongamento anunciado até abril), esta realidade muito provavelmente tenderá a agravar-se. E se os anúncios acontecem em catadupa, a cada visita que se faz a empresas criteriosamente escolhidas por serem as menos afetadas, as medidas para acudir quem precisa seguem o seu ritmo normal, que é lento. Mais, (re)anunciam-se medidas e verbas para apoio que se revelam autênticas miragens e, entretanto, as associações de solidariedade não têm como responder à procura, ao ponto de muitas deixaram de receber novos «casos».

Não será fácil governar nestas circunstâncias, em que os problemas são enormes e as respostas tradicionais não são solução. Mas sendo os recursos limitados, tudo piora quando ainda por cima são mal geridos. Soubemos esta semana em que será aplicado o envelope financeiro do Plano de Recuperação e Resiliência disponibilizado pela União Europeia: a Região candidatou aos 561 milhões apenas investimento público, sendo que 114 milhões são para a transição digital da Administração Pública, a contrastar com os 89 milhões para o Sistema Regional de Saúde ou os 83 milhões para as respostas sociais ou com os zero euros para a Cultura ou para a Educação. Zero é também a verba alocada para a recapitalização das empresas e robustecimento do tecido empresarial das micro e médias empresas. Zero também para o setor primário: nenhuma aposta no setor agrícola e pecuário, nenhuma aposta no setor das pescas, capaz de nos tornar menos dependentes do exterior. E como se não bastasse, alega-se que ainda faltam milhões para investimento em infraestruturas marítimo-portuárias – para Albuquerque 100 milhões, para Calado 172 milhões.

É hercúlea a tarefa de governar com uma crise como a que atravessamos, mas um dos grandes problemas deste estilo de governação é haver demasiadas certezas onde devia haver dúvidas, é imposição em vez de diálogo e concertação. Recorrendo-me de uma expressão de Max Weber, a «clerical mania de querer ter razão» vai custar-nos caro. Outra vez.