Crónicas

Juventude empurrada para o quarto

Todos nós temos memórias da nossa infância, dos hábitos que fomos criando e dos gostos que desenvolvemos. Eu, nunca soube o que era viver sem liberdade, sempre com respeito pelos mais velhos e tendo em conta valores que me foram incutidos, que a minha terminava, onde começava a dos outros, mas de uma forma natural. Uns viviam com mais, outros com menos, mas quando tocava a campainha para o recreio, a lei era a das nossas reais capacidades. Os mais hábeis ganhavam no berlinde, os mais fortes no “lá vai alho”, os velozes na “apanhada” e as meninas na macaca. Era o tempo das emoções, a jogar ao quarto escuro, nos aniversários com os amigos onde havia sempre um lanche com pães de leite mistos, sumos variados e um bolo, que todos rodeávamos ( quase uns em cima dos outros para cabermos nas fotografias ), para o rei da festa apagar as velas.

Habituámo-nos a ir para a casa dos vizinhos ou a jogar à bola para o parque, até começar a escurecer. Não havia perigos para além do atravessar a rua e de supostos estranhos, de quem não deveríamos aceitar nada que nos oferecessem. Mais tarde, as primeiras saídas à noite, as miúdas a quem dávamos a mão e jurávamos amor eterno, a aventura da primeira cerveja ou do cigarro às escondidas. As festas da faculdade, as eleições para a Associação de Estudantes e as tardes a estudar em grupo. Éramos o que nos apetecia ser, ou o que conseguíamos. Mas o mais importante era estarmos juntos, viver em grupo.

Essa forma de ser e de fazer, foi-se alterando um pouco com o passar do tempo. Com a globalização das consolas e dos computadores, a vida na juventude tornou-se para muitos mais sedentária, mas nem por isso as pessoas deixaram de estar, à sua maneira. Talvez menos na rua e mais em espaços fechados. Esta pandemia veio alterar tudo. E quando penso nas repercussões, lembro-me sobretudo dos mais jovens, a quem lhes está a ser retirado o privilegio dessas “loucuras”, das amizades intensas e próximas do convívio em sociedade. Chamam-lhe a geração Z e ficarão para sempre marcados por esta pandemia. Jovens que passavam a sua vida nas universidades ou na escola, habituados a fazer desporto e a ir a concertos. A criarem memórias, momentos únicos que deveriam ficar plasmados para sempre no seu diário, foram de um momento para o outro empurrados para os seus quartos. E se para uns, à primeira vista, pode ter sido uma bênção, passar o dia nos videojogos e sem a seca das aulas, no futuro, todos perceberão a falta que estes dias lhes farão.

Um Mundo que se virou do avesso. Voltaram os que estudavam fora, outros obrigados a regressar para casa dos pais. Alguns passaram de ser desportistas, estudantes ou profissionais em inicio de carreira, para se tornarem cuidadores de pais ou avós doentes. Adolescentes que se tornaram pais e mães à força. Um abalo do tamanho de um sismo, no que seriam perspetivas profissionais, sonhos desenhados a régua e esquadro. Muitos que estavam no primeiro emprego foram despejados. Acabou-se a rua, os jogos de futebol e os aniversários com os colegas. Fechou-se a porta do quarto e por ali se passou um ano.

Desejo muito que isto passe, também por eles. Porque temo estarmos a criar uma geração amargurada, assaltada por um vírus que lhes tirou os melhores anos de vida, a liberdade da juventude. Se a todos nós faz falta, imagine-se a eles. Os mais novos precisam de ar puro, de correr e saltar, de passear na rua e de construir a sua personalidade, alicerçada nas suas próprias experiências. Mas também do toque e da magia dos afetos. Esperemos que não sejam afetados nas suas carreiras, mas sobretudo na sua saúde mental. Que em breve possam recuperar tudo o que perderam. Será nosso desafio enquanto sociedade, tirá-los dos quartos e dos sacrifícios a que os submetemos e darmos-lhes um futuro. Uma nova oportunidade para serem felizes.

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