Crónicas

Bem junto ao coração

Está outra, a casa que nos deixaste. Tentámos cuidar das galinhas e das rolas, morreram algumas, mas o Tonecas está lá, a guardar a herança

Falta uma semana para o Natal, as previsões são de chuva e nas notícias há uma variante nova do vírus, mas passou um ano desde que me ligaram do hospital a dizer que te tinhas ido. Não foi surpresa, sabíamos que estava para acontecer e, ainda assim, estremeci quando me disseram. Uma semana antes tínhamos feito o presépio, comido chocolates e visto televisão. E fomos levantar a pensão, que te custava deixar o dinheiro para o Estado.

O cancro fazia caminho, cada vez mais voraz, ainda que desses luta. Querias ter a barba feita, o cabelo penteado, lá naquele jeito de que um homem pode estar vergado por dentro, escusa é de mostrar. Nisso somos parecidos, diz quem nos conheceu que no resto também e até no laço que me liga a casa, à nossa casa, encavalitada na curva e onde passei o Verão a pintar, arrumar e a imaginar como te sentirias por ver aquele alvoroço a remexer as tuas tralhas e ferramentas.

Está outra, a casa que nos deixaste. Tentámos cuidar das galinhas e das rolas, morreram algumas, mas o Tonecas está lá, a guardar a herança. Temos uma horta, fizemos doce de nêspera e de ameixa e mudámos a sala, pintámos a fachada e os armários da cozinha, que agora são de um azul anil. E eu despachei os antúrios e metade dos bibelôs, tirei os quadros da parede e mandei ao lixo os girassóis de plástico que estavam na sala.

Sei que não aprovarias as mudanças, mas, nesta história, sempre te doeu mais a ideia de que não nos tocava, que éramos indiferentes à casa, ao que significava de trabalho e esforço. Nunca fomos de falar, eu, tu e o Duarte. Somos assim, calados, não dizemos à primeira que gostamos, nem que somos capazes de amar as pessoas, as coisas e a memórias. A nossa casa no Laranjal é isso tudo, não a largamos e até parece ofensa quando perguntam se é para vender.

Podemos vender a memória da mãe a fazer bolos na véspera de Natal ou arrumar a lapinha à pressa antes que faltasse a luz? Ou a tua a dormir no sofá no dia de Festa, enquanto o Duarte rebentava bombas de garrafa dentro latas só para as ver voltear no ar? Nem a minha, de frente para o espelho do quarto de engomar, enfiada na roupa nova e cheia de esperança, a ver se ficava mais bonita? Eu acho que não. A memória, as lembranças do que fomos enquanto família também está naqueles quartos e a memória não é coisa que se possa avaliar a preços de mercado.

E, neste ano, neste que passou desde o dia que ligaram do hospital a dizer que te tinhas ido, nós tentamos manter de pé a herança. Fizemos o que sabíamos para cuidar das galinhas sem perceber de aves de capoeira e até fizemos uma horta, onde nem tudo correu bem, mas somos só nós, com as nossas insuficiências, a tentar estar à altura do que recebemos, a tentar manter-te aqui, mais perto, bem junto ao coração.