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O brilho da luz

Faz hoje exatamente 72 anos desde que uma certa canção de Natal, hoje conhecida e cantada pelo mundo fora, entrou pela primeira vez na lista dos Top nos Estados Unidos. E dentro de um mês já estava mesmo no topo. Falava sobre a rena, aquela cujo nariz vermelho se iria tornar, em poucos meses, o mais famoso do mundo, ultrapassando mesmo os dignos concorrentes fictícios, tais como o de Cyrano de Bergerac, o de Gogol, e sim, provavelmente até o do Pinóquio.

Baseando-se num conto de Robert May, escrito em 1939, o compositor Johnny Marks começou a esboçar a canção em 1948 e convenceu um dos artistas americanos mais presentes na rádio, televisão e em filmes da altura, o “Singing Cowboy” (Vaqueiro cantante), Gene Autry, a gravá-la no ano seguinte. Embora inicialmente tivesse desgostado da ideia, Autry deixou-se convencer pela sua mulher e pôs a canção no lado B dum seu “single”. Não se enganou - essa versão acabou por vender 15 milhões de exemplares.

Para muitos, o Rudolf/Rodolfo, enquanto um símbolo de Natal, é superado apenas pelo próprio Pai Natal, e o sociólogo James Barnett opinou que é o símbolo do Natal do séc. XX mais capaz de se tornar numa adição permanente às celebrações da época.

Haverá alguma ligação entre o nariz vermelho e luminoso da rena e os narizes vermelhos dos palhaços, cuja proveniência não é muito clara, mas que certamente já foram introduzidos nos anos 60 do séc. XIX?

A pesquisa recente, através das imagens infravermelhas, sugere que a maquilhagem intensa da cara e a resultante bola vermelha na imagem típica do palhaço não são mais do que uma ilustração exagerada dos processos fisiológicos no corpo humano enquanto nos rimos. Um riso sincero e intenso causa temperaturas elevadas na área de nariz e na área branca à volta da boca, o que resulta em vermelhão. Isso pode explicar a razão desta maneira de pintar a cara ser automaticamente associada com humor.

O ato da criação da história da rena insultada e desprezada, até se ter tornado a salvadora do Natal e heroína de todas as crianças que não teriam recebido as suas prendas sem a sua ajuda, foi efetivamente um ato curativo para o seu autor, que na altura estava a lidar com o pesar causado pelo falecimento prematuro da sua mulher. A rena, no fundo, salvou em primeiro lugar o seu autor.

O nariz vermelho, com o riso e boa disposição que provoca, tornou-se também o símbolo de várias ações tanto para erradicar a pobreza infantil (Red Nose Day), como para melhorar a qualidade da vida das crianças internadas nos hospitais (Dia do Nariz Vermelho em Portugal) – sempre um sinal luminoso de compaixão, solidariedade social e esperança dum futuro digno.

O que ainda mais enriquece a história do Rudolf é o facto de os seus dois autores terem as suas origens em famílias e tradições judaicas. Incidentalmente, Irving Berlin, o autor de mais uma canção emblemática, “White Christmas”, foi o filho dum cantor judaico. E já agora, mas ainda no séc. XIX: quem sabe se uma das mais profundas obras sacras cristãs de sempre, a Paixão segundo São Mateus de J. S. Bach, de 1727, teria sido ressuscitada da sua obscuridade e esquecimento um século depois se não fosse um dos mais prodigiosos músicos românticos, Felix Mendelssohn, ele próprio judeu.

São provas que a música, aquela de qualidade, seja ela de espírito leve ou profundo, ou de natureza festiva ou contemplativa, transcende as divisões às vezes impostas pela humanidade fracionada e as polarizações que sejam de interesse de alguém, e transmite a sua essência espiritual para quem tiver abertura de a receber.

Há dois anos escrevi aqui sobre o cansaço e a irritação que a exposição incessante à “música da época” pode causar. É um facto cientificamente comprovado. Mas, talvez, neste ano, quando, daqui a nada, começarem a ouvir aquela do Rodolfo, podem encará-la com benevolência e pensar em tudo de bom que ele já trouxe, está a trazer e ainda vai trazer, a todos os que precisam de uma luz para iluminar o seu caminho neste labirinto que é a nossa vida.